6.2.08

O tempo é um material fundente


Trazemos no regaço as cores da memória. Um suspiro pelos lugares de outrora, numa divagação que sela o tempo numa hermética arrecadação que se revisita, periodicamente. Meticulosamente. As cores e os aromas das memórias retratam os lugares de outrora como se fossem intemporais. Mas nem as ruas permanecem inertes, nem as casas desfilam na mesma sequência. Até as árvores mudam a tessitura da paisagem.

As memórias que se resgatam da poeira intemporal atraiçoam a visão. Ao revisitar os lugares que perfumam as memórias com um aroma adocicado, os sentidos acreditam que o lugar encapsulou aquele tempo mágico, idílico. E, porém, há mais coisas para ver, fragmentos que semeiam a diferença. Mudara o tempo. Desmente a voracidade com que as memórias instalam nos sentidos a ilusão da intemporalidade. Os lugares transformam-se, como o tempo se fundiu na ampulheta.

Há um desgaste inútil ao subir à arrecadação das memórias. Como se fosse possível torcer a natureza e mentir ao tempo. Naqueles instantes de recolhimento, ao retomar contacto com o registo pessoal vertido no passado, refúgio na intimidade do ser. No recatamento das memórias, por uns instantes, ir lá trás e colocar no tempo presente o que ficou dobrado nas páginas já amarelecidas. Prova que o tempo é matéria fundente, uma argamassa que temos nas mãos e moldamos à conveniência do calendário, dos vapores que convocam a revisitação dos lugares, dos momentos, das pessoas. Um exercício porventura esvaziado de significado. Uma imensa embriaguez de inutilidade. Há tempo perdido ao mergulhar no tempo já gasto. O tempo que não volta a acontecer. Nem sequer nos esboços conseguidos que se aproximam de uma perfeita reconstrução dos lugares, dos instantes, das pessoas, das palavras ditas. Tempo perdido: uma viagem que traz, no seu regresso, uma recompensa ilusória, um fogo que não arde, combustível inerte que desgastou fragmentos preciosos do tempo presente.

Na deriva pelas páginas já dobradas, funde-se o tempo futuro. São as pedras gastas de calçadas cansativamente percorridas. Lugares de onde já nada se retira, exauridos. As lições que havia a recolher, há muito emolduradas no arcaboiço do ser. Na negação da nostalgia não se ensaia turvar o tempo ido, ou esquecer lugares de outrora. Imperativo maior é decantar o horizonte que se descerra diante dos olhos. Só os temerosos dos dias que hão-de vir se encerram na confortável presciência do tempo fácil de resgatar, o tempo que sabemos como aconteceu. A vida, sempre tão curta, não se honra a si mesma quando o escasso tempo se demora em rememorações contínuas. São espasmos que fundem o calendário ainda virgem.

Os lugares onde nidificam as tentadoras memórias ficam retratados para todo o sempre. Sem a traição de desfazer o passado, ou a indignidade de o refazer, esses lugares, os instantes que eles sagraram, apenas mais uma camada para a densidade que as páginas já amarelecidas não deixam esconder. De cada vez que a existência desliza para as catacumbas do tempo resgatado, uma terrível fusão presenteia a mentira do exercício repristinatório. A fusão de dois tempos: a intrusão do tempo passado é a alcáçova onde se aprisiona o tempo presente. Uma faca funda que se espeta no único tempo que os dedos conseguem sentir, sem o apelo já onírico dos sentidos atraiçoados pelas memórias. E sim, há tempo gasto, tempo perdido, ao revisitar tudo isso.

Lugares desconhecidos, sensações inéditas, o perfume que é anunciado pela aventura do futuro. A coragem exige peito aberto às ondas, deixar que o vento trazido pelo tempo presente se consuma, venha ferver o seu próprio futuro. A homenagem maior ao passado sedimentado é olhar de frente para os fragmentos do tempo que se sucedem, o alicerce de todo o tempo no seu futuro por revelar. Porque há um dever indeclinável de sorver o tempo com todas as forças que o corpo consiga reunir. Só assim merecedores da sagração do tempo ainda desconhecido, o único por degustar.

A teimosia em decapar o tempo já exausto, em divagações repetitivas que refazem memórias, é o punhal que entra fundo no lugar destinado ao tempo por tragar. Um material fundente, onde se perde a beleza do presente na consumição de revisitar o passado. A negação da homenagem ao único tempo que interessa: o porvir. A nostalgia é um alçapão envenenado de onde poucos se conseguem erguer.

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