18.2.08

A discoteca mais cara do mundo – ou ecos de um “clubbing” na Casa da Música


Algum dia teria que acontecer a minha entrada no mastodonte das artes, sorvedouro de recursos públicos, outro exemplo (mais) do famoso descarrilamento das contas públicas. Ia a um concerto (Múm e Pere Ubu) que acabei por não ver, pois o desleixo das coisas deixadas para a última hora surpreendeu com os bilhetes esgotados. Restava o plano B: ir ao “clubbing” da Optimus, um desfile de DJs pelas salas da Casa da Música que se improvisaram discotecas.

A ideia tem méritos. Para obra tão cara, a imaginação de lhe dar usos variados. Uma programação abundante, diversificada; uma ocupação intensa do cubículo incensado na massa fria do cimento que rodeia os visitantes. Só assim haverá arte de amortizar a fartura de dinheiro que o edifício custou. Ali dentro, ao som estridente do trance-ou-house-ou-lá-o-que-aquilo-se-chama, dei comigo estacado na discoteca mais cara do mundo. Orgulhoso da cidade em que vivo. Daqui a sugestão para programadores culturais: ao mundo, ofereçam a imagem da discoteca mais cara do mundo, para atrair mais peregrinos que são consumidores de roteiros do turismo cultural. Assim como assim, o fantástico primeiro-ministro sentenciou, há tempos, que Lisboa tinha entrado no roteiro cultural da Europa. Que não se esqueça do Porto e da sua discoteca mais cara do mundo, para não ser acusado pelos arrebatados tripeiros de contribuir para o hediondo centralismo.

Ali dentro, cercado pelo cinzento asfixiante e pelas formas originais do edifício, com as arestas vivas que pareciam afunilar das alturas sobre os visitantes de copo na mão, os ouvidos agredidos por sons que continuam a ser corpos estranhos. Entre a fauna pós-pós-moderna, que saltava excitada no arrebatamento dos sons repetidos e da alquimia das músicas misturadas e remisturadas, sentia os ouvidos ardentes como se houvesse martelos pneumáticos numa meticulosa percussão aflitiva.

Admito: o pé não conseguia reprimir um movimento basculante, impelido pelos ritmos alucinantes. Às vezes, o corpo hesitante ensaiava movimentos mais generosos, desprendendo-se do estigma do dançarino desajeitado. Longe, muito longe, dos corpos desinibidos que se faziam à coreografia ostensiva, desafiando os DJs que retorquiam com mais uma dose de sons misturados e remisturados, cheios de efeitos especiais com o auxílio de software manipulado em computadores portáteis que rivalizavam com leitores de CD e o prato dos discos de vinil que aqui ainda são um ingrediente necessário.

Os DJs iam mudando, a música também. A sala enchia-se com a madrugada que entrava. Do alto das escadas, uma vista total da sala e da audiência que ensaiava coreografias díspares de frente para os DJs de serviço. Já com a madrugada a pino, foi a vez da música saída do manicómio. Percussões estridentes, às vezes longos minutos de repetitivas percussões que eram fragmentos ásperos entrando nos ouvidos. À mistura com imagens que se reproduziam na parede cinzenta de cimento, imagens alucinogénias que anestesiavam os corpos em coreografias disformes e maquinais. Como se fosse um convite ao desprendimento dos corpos da dimensão terrena onde aportavam. Os pés estariam em contacto esparso com o solo, mas as mentes adejavam algures, entre corredores muito coloridos e corpos extenuados languidamente deitados, mostrando-se exangues.

Havia profusão de faixas etárias. Mais novos, mais velhos – até um casal na sexagenária idade, porventura na desventura de um erro de diagnóstico ao lerem a programação da Casa da Música. Não fiquei cliente. Não sei se será sinal de envelhecimento, ou apenas desalinhamento dos cânones musicais que por ali dominam. Eram três da madrugada: os ouvidos enrubescidos e os neurónios cansados por tanta percussão alucinantemente repetitiva convocavam ao abandono do recinto.

As dores da música de manicómio perduraram sono dentro. Quando acordei, ainda havia ecos da música de manicómio a troar no cérebro. E não eram as dores da consumição etílica, que se guardam para o dia seguinte, pois a abstémia condição o impede. Eram mesmo as cicatrizes da música saída do manicómio, as cores psicadélicas barradas nas paredes de cimento, a rivalizar – agora percebo – com o psicadélico magma alaranjado da empresa de telemóveis que patrocinava o evento.

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