A mitologia de Robin dos Bosques perdura. Podem os novos justiceiros não palmilhar as terras em demanda das opressões dos fortes sobre os desprotegidos. Nem tão pouco roubam aos endinheirados para distribuir pelos pobres. A tarefa está reservada ao sistema fiscal que asperge as pétalas de socialismo inevitável, na forma da redistribuição forçada de rendimentos. As pichagens de paredes no período revolucionário quente, logo a seguir ao 25 de Abril, já avisavam: “os ricos que paguem a crise”. Para o sistema de impostos, estamos permanentemente em crise. Socialismo radical.
A gente abastada não se comove com os predicados do socialismo científico. Quando pode, foge aos impostos. Mentem com todos os dentes que têm: escondem rendimentos, escondem fortunas, servem-se da engenharia fiscal para pagar menos impostos, ou até – suprema heresia – para fugir aos impostos. Às vezes, a fuga é ilícita e ficam com o fisco à perna, aturando fiscais tacanhos, muito cinzentos, cobradores de fraque em nome do povo credor dos impostos em falta. Outras vezes é apenas elisão fiscal, a ginástica entre os buracos da lei que deixam uma pequena fresta por onde fogem ao pagamento de um balúrdio de impostos, sem irem contra a lei.
O que nos vale é que os diabos que não se convencem das suas obrigações fiscais têm a vida cada vez mais difícil. O fisco aperta as malhas, com a ajuda da tecnologia que faz cruzamento de dados entre várias entidades, para que os contribuintes não sejam relapsos nos deveres fiscais. E mesmo que a máquina fiscal não fosse um monstro tentacular que cerca, impiedoso, qualquer tentativa de fuga aos impostos, teríamos ainda direito a uma espécie de provedor do povo carenciado. É provedor por iniciativa própria, sem ter sido constituído nessa qualidade por decreto do governo. Saldanha Sanches, o justiceiro dos impostos.
As suas aparições como especialista dos impostos são frequentes. Dá lições de permeio com uma retórica caceteira, espumando uma raiva incontida em relação aos contumazes dos impostos. Que, normalmente, são os ricos, essa espécie odiada por Saldanha Sanches. Na sua infância, deve ter sido assoberbado por sonhos constantes que o faziam regressar à Idade Média e vestir-se na figura de Robin dos Bosques. Hoje, o justiceiro do fisco adoraria vasculhar as contas bancárias dos endinheirados, passar em revista as suas declarações de impostos, chafurdar nos registos prediais para descobrir o património imobiliário. Só para, no final, denunciar e depois punir – e com severidade – os que ousassem fugir, um cêntimo que fosse, ao dever de pagar os impostos devidos.
A saga justicialista exige desbragamento verbal. Solta meias denúncias: lança a granada à espera que outros venham tirar a cavilha para ela rebentar. Queixas que ficam pela metade, não vão os acusados colocá-lo em tribunal por ofensas à honra. A incontinência verbal só chega para percebermos que ele suspeita de muita coisa, de muita gente, das coisas comezinhas que “todos sabemos” mas que, no final, ficam quase sempre por provar. Entretanto vai espalhando a confusão. E surgindo aos olhos dos incautos como alguém dotado de uma consciência cívica apurada: o seu estatuto de figura pública e de reputado docente de uma não menos reputada universidade são o substrato para um dever de silenciar o silêncio, soltando a voz de protesto contra os que já tanto têm e se recusam a distribuir pelos necessitados, via impostos.
Às vezes não percebo se a urticária contra os ricos resulta das dores de parto de um passado revolucionário no regaço do MRPP, ou se há ali convicção no combate contra a evasão fiscal. Quem o ouve fica com a impressão que só os ricos escondem rendimentos e fortuna para escaparem ao jugo do fisco – e quanto mais ricos, mais fogem. Incompreensível é ainda não ter sido convidado para director-geral dos impostos, ou secretário de Estado da tutela, e com cargo vitalício. Não será pelo cadastro de extrema-esquerda deixado lá atrás, pois que já houve um primeiro-ministro com o mesmo registo.
Para quem acha que pagar impostos é um roubo legalizado, o justiceiro fiscal é dos piores inimigos que se pode conceber. Desconfio quando me aparecem pela frente personagens muito certinhas, só virtudes, com uma moralidade milagrosamente superior que as coloca num estatuto quase divino que dá direito a sentenciar comportamentos alheios. Quem passeia a vaidade da cidadania exemplar há-de ter esqueletos tenebrosos escondidos bem no fundo de um baú inacessível. Quanto mais estes justiceiros (sem que ninguém lhes tenha pedido para desempenharem o papel) insistirem em o ser, denunciando, protestando, lançando suspeições, mais tenho vontade de fugir aos impostos, de fugir com os parcos rendimentos para uma Suíça, um Liechtenstein, umas ilhas Caimão, umas ilhas Virgens.
O paraíso é o lugar onde nem sequer o rosto do justiceiro fiscal possa vogar numa televisão à distância dos olhos. A menos que ele amesendasse no poder e mandasse as chaimites invadir a Suíça, o Liechtenstein, as ilhas Caimão e as ilhas Virgens. Submetendo pela força estes lacaios do grande capital e obrigando-os a abdicar do malfadado sigilo bancário.
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