5.2.08

A tradição carnavalesca do povo alarve


Há uma aldeiazinha lá para os lados de Vouzela. Perdida entra as serranias que se encavalitam nos vales. As gentes locais inventaram uma tradição de carnaval, herança de tempos a que só historiadores zelosos seriam capazes de resgatar uma data. Reza a tradição popular: pelo carnaval, que é sinónimo de folia das gentes, caça-se um gato vadio. Mete-se o bichano dentro de um saco, pendura-se o saco no alto de um bordão, que baloiça sobre um amontoado de lenha e pinhas a que se chega fogo. À medida que as chamas se levantam e aquecem a serapilheira onde o gato se debate, a populaça exulta, incendeia as emoções com os gritos aflitivos do animal que sente o esturro a chegar à cauda felpuda.

O fogo pega-se à serapilheira. O bicho trepa pelas paredes frágeis, pelas paredes escorregadias do saco onde o meteram contra sua vontade. As gentes continuam na farta gargalhada, tão farta como o ominoso espectáculo. O saco acaba por ceder à voragem do lume que por ele sobe. O gato cai – e depois depende: ou fica na fogueira, numa morte horrenda para gratificação grotesca da gentalha; ou escapa das chamas e foge com as patas em ferida. E como se não bastassem tantas tropelias juntas, o animal é perseguido pela turba equipada com varapaus, um arremedo de inquisição. É ver quem mais acerta no bicho que definha.

Nas redondezas, toda a gente acha isto normal. Tão normal quanto o estatuto de “tradição” a que a bárbara manifestação foi emproada. Complacência geral. Nem o autarca, que se lhe exige respeito pelas idiossincrasias locais; nem o padre, que em matéria de tradições os sacerdotes não mexem um dedo, não vá a ousadia reverter contra o conservadorismo da igreja que representam; e nem sequer o chefe da GNR, que se pensava existir para fazer respeitar as leis. Todos anuem na barrenta tradição. Porventura as leis da república que proíbem e punem maus tratos em animais não se aplicam naquele lugarejo. A todo o tempo se descobre, no Portugal profundo, ilhas isoladas que, em nome da sagrada tradição, são oásis de ilegalidade.

O problema nem sequer deve ser olhado sob a lupa da lei. Que ela proíba a barbaridade gratuita de que são vítimas os animais é detalhe. Aterrador é imaginar a turba a aplaudir os bravos que foram à caça do gato e chegam com a presa para deleite colectivo. As massas são atreitas à bestialidade. Há quem diga que a estreiteza de espírito não acalenta horizontes mais vastos. Os animais, que deus fez sem a inteligência humana, existem para servir os interesses, as delícias, e as perversões até, dos humanos. Há Barrancos espalhados de norte a sul. Excepções e excepções ancoradas no véu sagrado, no véu intocável, da tradição. A tradição recebe a unção popular e o beneplácito de antropólogos e outros que testemunham o povo vibrante com o sofrimento de um animal. Os mesmos cientistas sociais que militam na causa da ciência como intervenção são, nesta ocasião, espectadores imóveis: limitam-se a diagnosticar, que mexer na tradição (intervir) seria uma heresia.

Estas tradições repugnam. São alarvidades que qualificam um povo. Traços de ancestralidade que resistiu à marcha do tempo. Uma bestialidade ímpar, a destas gentes que vigiam o calendário na ânsia de chegar o carnaval e torturarem mais um gato indefeso. Não vou ao ponto de andar de braço dado com alguns bem pensantes, que denunciam a grotesca exibição de animalidade humana e opinam que a lei devia encerrar o costume nos claustros de um bem encerado museu. Limito-me a observar a bestialidade em dose bruta. Recusando-me a alvitrar a ofensiva de brigadas dos bons costumes contra esta tradição aldeã e malsã. Todos têm direito à sua alarvidade.

A cada carnaval, e enquanto a memória desta lastimável tradição perdurar, há-de sobrar um profundo lamento. E muita comiseração. Por cada gato que tiver a desdita de ser protagonista de um espectáculo de ensandecimento colectivo, com as gentes a urrarem contentamento com os miados lancinantes do bicho em sofrimento. E muita pena por tanta boçalidade humana espalhada por área tão exígua. Uma condensação de alarvidade, como se fosse um epifenómeno local, que nem sequer a insensibilidade perante os animais ou até o ódio aos gatos desvenda explicação assisada.

Resta um povo abrutado que adere ao ritual só porque é tradição – um argumento tão racional como alguém que se justifica dizendo “porque sim”. Alguns dirão: as tradições não têm explicação. Duvido da irracionalidade do argumento. Há sempre uma semente que faz fermentar uma tradição. Ao que consta, os locais não encontram o fio à meada. Entretanto, passam de geração em geração a sórdida tradição. Assim como assim, estamos na terra que celebra a matança do porco e as touradas.

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