Há uma aldeiazinha lá para os lados de Vouzela. Perdida entra as serranias que se encavalitam nos vales. As gentes locais inventaram uma tradição de carnaval, herança de tempos a que só historiadores zelosos seriam capazes de resgatar uma data. Reza a tradição popular: pelo carnaval, que é sinónimo de folia das gentes, caça-se um gato vadio. Mete-se o bichano dentro de um saco, pendura-se o saco no alto de um bordão, que baloiça sobre um amontoado de lenha e pinhas a que se chega fogo. À medida que as chamas se levantam e aquecem a serapilheira onde o gato se debate, a populaça exulta, incendeia as emoções com os gritos aflitivos do animal que sente o esturro a chegar à cauda felpuda.
O fogo pega-se à serapilheira. O bicho trepa pelas paredes frágeis, pelas paredes escorregadias do saco onde o meteram contra sua vontade. As gentes continuam na farta gargalhada, tão farta como o ominoso espectáculo. O saco acaba por ceder à voragem do lume que por ele sobe. O gato cai – e depois depende: ou fica na fogueira, numa morte horrenda para gratificação grotesca da gentalha; ou escapa das chamas e foge com as patas em ferida. E como se não bastassem tantas tropelias juntas, o animal é perseguido pela turba equipada com varapaus, um arremedo de inquisição. É ver quem mais acerta no bicho que definha.
Nas redondezas, toda a gente acha isto normal. Tão normal quanto o estatuto de “tradição” a que a bárbara manifestação foi emproada. Complacência geral. Nem o autarca, que se lhe exige respeito pelas idiossincrasias locais; nem o padre, que em matéria de tradições os sacerdotes não mexem um dedo, não vá a ousadia reverter contra o conservadorismo da igreja que representam; e nem sequer o chefe da GNR, que se pensava existir para fazer respeitar as leis. Todos anuem na barrenta tradição. Porventura as leis da república que proíbem e punem maus tratos em animais não se aplicam naquele lugarejo. A todo o tempo se descobre, no Portugal profundo, ilhas isoladas que, em nome da sagrada tradição, são oásis de ilegalidade.
O problema nem sequer deve ser olhado sob a lupa da lei. Que ela proíba a barbaridade gratuita de que são vítimas os animais é detalhe. Aterrador é imaginar a turba a aplaudir os bravos que foram à caça do gato e chegam com a presa para deleite colectivo. As massas são atreitas à bestialidade. Há quem diga que a estreiteza de espírito não acalenta horizontes mais vastos. Os animais, que deus fez sem a inteligência humana, existem para servir os interesses, as delícias, e as perversões até, dos humanos. Há Barrancos espalhados de norte a sul. Excepções e excepções ancoradas no véu sagrado, no véu intocável, da tradição. A tradição recebe a unção popular e o beneplácito de antropólogos e outros que testemunham o povo vibrante com o sofrimento de um animal. Os mesmos cientistas sociais que militam na causa da ciência como intervenção são, nesta ocasião, espectadores imóveis: limitam-se a diagnosticar, que mexer na tradição (intervir) seria uma heresia.
Estas tradições repugnam. São alarvidades que qualificam um povo. Traços de ancestralidade que resistiu à marcha do tempo. Uma bestialidade ímpar, a destas gentes que vigiam o calendário na ânsia de chegar o carnaval e torturarem mais um gato indefeso. Não vou ao ponto de andar de braço dado com alguns bem pensantes, que denunciam a grotesca exibição de animalidade humana e opinam que a lei devia encerrar o costume nos claustros de um bem encerado museu. Limito-me a observar a bestialidade em dose bruta. Recusando-me a alvitrar a ofensiva de brigadas dos bons costumes contra esta tradição aldeã e malsã. Todos têm direito à sua alarvidade.
A cada carnaval, e enquanto a memória desta lastimável tradição perdurar, há-de sobrar um profundo lamento. E muita comiseração. Por cada gato que tiver a desdita de ser protagonista de um espectáculo de ensandecimento colectivo, com as gentes a urrarem contentamento com os miados lancinantes do bicho em sofrimento. E muita pena por tanta boçalidade humana espalhada por área tão exígua. Uma condensação de alarvidade, como se fosse um epifenómeno local, que nem sequer a insensibilidade perante os animais ou até o ódio aos gatos desvenda explicação assisada.
Resta um povo abrutado que adere ao ritual só porque é tradição – um argumento tão racional como alguém que se justifica dizendo “porque sim”. Alguns dirão: as tradições não têm explicação. Duvido da irracionalidade do argumento. Há sempre uma semente que faz fermentar uma tradição. Ao que consta, os locais não encontram o fio à meada. Entretanto, passam de geração em geração a sórdida tradição. Assim como assim, estamos na terra que celebra a matança do porco e as touradas.
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