12.2.08

Também somos do tribalismo?


Nem sei como me situar perante os critérios da comunicação social. Tenho a consciência da vertigem do espectáculo que conduz as opções editoriais. A tentação pela imagem fácil, a imagem-choque, aquela imagem que desperta a veia animalesca que vive, latente ou ostensiva, em cada um. É o império do jornalismo sensacionalista, que abdica do rigor para se entregar às preferências do povo inculto. Demite-se da faceta pedagógica que, julgava na minha inocência, devia ser seu atributo.

Ontem senti uma vontade de vomitar para cima da televisão. Pela vilania das imagens servidas no noticiário nocturno. Uma primeira vez, ao de leve, no resumo ao bater das oito da noite. Uns minutos mais tarde, as imagens da afronta passearam-se segunda vez, demoradas. Como se não bastasse a repetição, a RTP voltou a passá-las terceira vez. Imagens no rescaldo do ataque ao presidente da república e ao primeiro-ministro de Timor-Leste. Na linguagem das pesarosas reacções oficiais, imagens da “tentativa de decapitação” do regime. As imagens do insurgente, o Major Reinado, jazendo já cadáver no meio de uma poça de sangue.

A imagem da bestialização: não chegariam testemunhos de gente considerada credível, por exemplo do contingente da GNR estacionado em Timor-Leste, assegurando que o mau da fita tinha sido morto? Não. Era necessário presentear a opinião pública com as doces imagens do mau da fita imerso numa poça de sangue, do seu sangue derramado após mais um putativo golpe de Estado (ainda que não haja certeza de ter sido tentativa de golpe de Estado, não obstante a certificação dos sacerdotes do politicamente correcto que, à distância de milhares de quilómetros, já cuidaram de assim sentenciar).

Um doce presente: quem atenta contra heróis e tomba mergulhado no insucesso deve ser humilhado na hora da morte. O preço a pagar pela afronta de ter atentado contra a vida dos heróis. Que interessa que os cânones politicamente correctos, dos que se pavoneiam pelos meandros do humanismo, sejam espezinhados neste necessário parêntesis que excepciona a regra? Os que palmilham essas veredas nem sequer terão reparado na indignidade das imagens que ostentam o cadáver do Major Reinado. Nem uma palavra protestando o atropelo dos ditames humanistas, que tanto (e correctamente) empunham, por exemplo, ao protestarem contra as violações básicas dos direitos humanos na prisão de Guantánamo. A emoção dos acontecimentos e a preocupação pela vida de um dos heróis atacados terão ofuscado o discernimento desta gente, sempre tão pressurosa em indicar o lado bom da barricada onde as ovelhas ordeiras devem ser pastoreadas.

Desta comunicação social espero pouca coisa, habituado aos critérios editoriais que são a expressão da mediocridade que campeia. Mares de sangue é com a comunicação social – sabendo que se dirige a um povo bruto, um povo que também adora meter o nariz em cabidelas do género. Ontem passou dos limites. É repugnante a divulgação das imagens do cadáver de Reinado, uma única vez que fosse. É infamante que em quinze minutos tenham passado três vezes essas imagens. Numa repetição nauseabunda.

A sensação que sobra é a de que não nos distinguimos do tribalismo dos outros, que se passeiam pela inanidade da violência com requintes de malvadez que julgamos ausentes de nós. É o que resulta da divulgação da imagem do mau da fita caído em combate (e nem vou discutir a simplicidade de quem vê o mundo a preto e branco, com a certeza inabalável de quem é o mau da fita e de quem são os heróis). Para que nós, tutores do bom caminho, sejamos certificados que aquela nódoa foi varrida do baralho. Acabamos cultores da mesma barbárie que julgamos ser atributo das sociedades ditas incivilizadas.

Não escapamos ao diagnóstico se formos penhores da brutalidade de quem ostenta o cadáver do mau da fita como quem exibe um troféu de caça. Não é inédito: recordo-me das imagens quando Savimbi foi morto pelas tropas angolanas, com grandes planos do cadáver repetidos à exaustão. Ou de como vieram parar à televisão as imagens que precederam o enforcamento de Saddam Hussein. Há muitos cultores do politicamente correcto que anseiam por alardear a sua superioridade civilizacional (o que acho, à partida, disparatado). Fracassam pelo seu silêncio diante das imagens da barbárie, das imagens que humilham uma pessoa que acabou de se transformar em cadáver. Talvez sem darem conta, são um areópago de tribalismo. O tribalismo de quem não denuncia o tribalismo alheio.

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