14.2.08

Circo e rosas


Sarkozy & Bruni. A política já o tinha deixado de ser há muito tempo. Só um palco de ilusões, onde contam os malabarismos, a espectacularidade das palavras em ocasiões solenes, estudadas com a milimétrica cirurgia dos fazedores de imagem. A política abastardou-se, perdeu o rasto da ideologia. Dizem alguns: são os ventos do pragmatismo, que põem a política (e a governação) ao serviço das pessoas. Os meandros da ideologia são as sobras para ideólogos, filósofos, ensaístas e outras abencerragens encerradas em empoeiradas e escuras bibliotecas.

De França chega episódio que é um passo em frente na mutação da política. O romance do presidente francês com uma ex-top model e agora cantora que encanta um exército de fiéis seguidores – porventura são-no (seguidores) mais pelos atributos físicos do que pelos dotes artísticos, o que não será confortável para a artista. O passo em frente é uma exibição de fulanização da política: a simbiose entre a vida pessoal e actividade pública de Sarkozy. No fim de contas, será um passo – mais um – atrás.

Andam por aí alguns observadores que anunciam que já perceberam tudo: como hoje não se dá ponto sem nó na política, com políticos nas mãos dos consultores de imagem, há aqui uma elaborada encenação para desviar as atenções. O público, atraído pela resplandecente vida amorosa do seu presidente da república, e ao mesmo tempo anestesiado para a desmaterialização da governação. Em vez de vigiarem de perto Sarkozy político, encantam-se com o romance com a cantora Bruni. Outros, talvez mais invejosos porque são testemunhas de como um adversário político roubou o coração de uma cantora que endeusavam, peroram sobre a inanidade do político Sarkozy, que assim se refugia na asa protectora da (dizem eles) deslumbrante Bruni.

Quem se põe a jeito dos holofotes mediáticos procurou ser o alvo de toda a atenção. O que me intriga é como pode uma figura que à partida já é pública, com tudo o que isso significa de perda do recato que só o doce anonimato traz, como pode essa figura adensar a exposição da sua vida privada como Sarkozy (e Bruni). O idílio parece uma telenovela com episódios todos os dias nos noticiários, com fotografias dignas de um filme romântico de segunda categoria todos os dias nos magazines, fossem revistas cor-de-rosa ou sérios periódicos. Um dia destes, detalhes sobre a vida íntima do casal?

Uma possível explicação que desmerece o feminismo é a seguinte: que mais pode desejar um cinquentão saído de um divórcio, ao que consta doloroso, que a beldade caída no regaço? Há no casal Sarkozy (ou como dizem alguns, da esquerda invejosa, o casal Bruni) um inevitável exibicionismo. Não querer resguardar recato da vida pessoal é o sinal desse exibicionismo. Ao mesmo tempo, Sarkozy desfila no plateau onde a companheira é experiente. Os franceses, divididos: uns, embevecidos pelas façanhas do D. Juan que é o inquilino do cadeirão presidencial; outros, esmerando a crítica pelo espectáculo que desvia as atenções para o voyeurismo a que são convidados pelo seu próprio presidente.

Enquanto não assentar a poeira deste idílio que faz do presidente francês um rival dos top stars do meio musical ou cinematográfico, a França está tomada por uma estranha silly season. A que se entregam todos os franceses: os que apoiam a aventura amorosa de Sarkozy e se esquecem que Sarkozy se parece esquecer de fazer aquilo para que foi eleito; e os invejosos à esquerda, que apontam o dedo a Sarkozy e se embrulham em comentários que têm tanto de jocoso como de mau gosto sobre a vida pessoal do adversário político que, para seu desgosto, preside ao país a que pertencem.

Pelo caminho, renovo a impressão que Sarkozy é um embuste. Politicamente, com uma sucessão de medidas que são a face vergonhosa de uma certa direita, que tem em França expoente máximo: a castração química de pedófilos e violadores; a extensão da pena de prisão a condenados que não mostrem sinais de reinserção social quando a pena chega ao final; a paternidade da eliminação do princípio da livre concorrência na União Europeia, durante as negociações do Tratado de Lisboa; a protecção dos interesses da indústria francesa, num proteccionismo que renega qualquer vestígio de liberalismo e arremete contra as ondas da globalização, como se a França estivesse orgulhosamente sozinha no mundo; e agora o autismo com a repetição da violação de compromissos no seio da União Europeia que obrigavam a França a atingir uma meta do défice orçamental, a que Sarkozy já mandou dizer que se está nas tintas. Para obliterar estas nódoas, um romance com a cantora para toda a gente ver.

Esta é a direita que faz as delícias das esquerdas. Um lauto banquete que deixa às esquerdas abundante terreno de crítica. O melhor que lhes pode acontecer: é que nem precisam de esconder os seus esqueletos no armário. Bastam os entretenimentos da vida pessoal de Sarkozy.

Sem comentários: