As mãos desastradas. Um deserto de aptidão para os louvores manuais. Sem jeito para espetar um prego na parede, compor avarias eléctricas, nos antípodas da jardinagem. E, todavia, as mãos são a parte mais preciosa do meu corpo. Talvez por isso mesmo: não podem ser desgastadas nas artes manuais, que laceram a epiderme, semeiam feridas e calosidades, afeiam-nas. Contudo as contradições internas não cessam de me afligir: pois não é verdade que ando frequentemente com as mãos tracejadas pelos arranhões dos gatos?
Descontando os paradoxos das mãos, o que há certeza é da ausente destreza para os trabalhos manuais. Vem de longe. Recordo-me dos tempos da escola. Como eram penosas as horas semanais das aulas de “trabalhos oficinais” – madeiras, macramé e electrotecnia, por esta ordem na sucessão dos trimestres. A plaina era um objecto estranho. Estava sempre desconfiado que a plaina entrasse nos meus dedos, com a sua lâmina escondida mas avisadamente afiada a espreitar pela extremidade. Deitava-me à plaina sem convicção, com um jeito desconchavado. Não havia surpresa quando, no final da obra, o objecto produzido era um esboço mal amanhado do que tinha sido pedido pelo professor.
Depois vinha o pior: macramé. As cordas entrelaçadas geravam geringonças de utilidade duvidosa. Não que fosse ausente alguma utilidade, concedo: os aprestos que a turma produzia serviam, as mais das vezes, para pendurar vasos ornamentados de flores. Eu é que duvidava da necessidade do sistema de ensino treinar os homens de amanhã para os predicados do macramé. Duvidava que a excelência estivesse ali, nos especialistas de um louvor doméstico. Admito que a repulsa do macramé era auto-interessada. Pela tremenda falta de destreza manual que me punha a dançar a descompasso com o macramé. Os dedos contorciam-se entre as cordas esbranquiçadas, e os nós que deviam soerguer-se teimavam em desfazer-se na inépcia das mãos. O resultado foi quase vergonhoso. A professora foi indulgente e presenteou-me com uma “negativa alta” (cito-a de memória). Chamou-me à parte para segredar: “só não tiveste 1 porque nas outras disciplinas tinhas excelentes notas”.
Para a electrotecnia partia com elevada desconfiança. Não podia ser pior que o macramé. O objectivo era chegar ao fim do ano lectivo sem manchar o cadastro com uma negativa na disciplina abstrusa que se misturava com outros saberes interessantes. O que me salvou foi haver uma componente teórica na parte dedicada à electrotecnia. O problema surgiu quando fui chamado a passar a teoria à prática. A mexer nos circuitos eléctricos, comprovando os ensinamentos transmitidos. Lá voltei a defrontar-me com a deficiente destreza manual.
Havia um motivo para a inaptidão: em criança tinha apanhado meia dúzia de choques por inadvertidamente ter levado os dedos à tomada da electricidade. E, como sabemos, os traumas de infância são travões mentais que se accionam mais tarde, quando se convoca um acto que nos leva de regresso às complicações da tenra idade. A lembrança dos choques eléctricos, que entravam pelos dedos e iam braço a dentro, bloqueava a acção diante dos circuitos eléctricos que tinha que manipular. Foi aí que comecei a descobrir outro defeito pessoal: a falta de pragmatismo, que foi sendo acentuada com a idade e com a descoberta de como a teoria (e a teorização) tem encantos indescritíveis. Ao ponto de hoje mergulhar em intrincados problemas teóricos que, no fim de contas, se forem espremidos servem para apaziguamento pessoal, desprovidos porém de aplicação prática.
As mãos desastradas continuaram, vida fora, destreinadas para as artes manuais. Numa relação causal que se auto-alimenta: os travões mentais herdados da infância e da adolescência nunca foram ultrapassados, redobraram de intensidade e fizeram-me voltar as costas a todos os louvores que exigem destreza manual. Às vezes tento combatê-lo. Ao menos, um esforço para dominar as mãos desastradas. Ou só para confirmar a inaptidão. No fim do exercício que exigiu a aplicação das mãos desastradas, sobra uma obra mal feita, o cansaço pelo tempo perdido entre parafusos e quejandos e a certeza que se reafirma: sou um aselha manual, incorrigível.
Um dia destes procurei montar uma cadeira de escritório. Um plano detalhado facilitava a montagem. Passo a passo, não havia como enganar. Horas depois, quando terminei a função – que, aposto, roubaria uns escassos minutos a alguém capacitado – sobravam parafusos e a cadeira abanava para além do razoável. Tempo depois, quando o desgaste da cadeira exigiu a sua substituição, comprei uma nova e contratei os serviços de montagem da loja. Foi a prova dos nove da aselhice manual: o que me levou um par de horas foi cumprido a preceito em meia dúzia de minutos.
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