É curioso: como no epitáfio de Paul Newman grande parte das fotografias que aparecem na imprensa retrata uma das imagens de marca do artista – um cigarro na ponta dos dedos, ou um cigarro negligentemente no canto da boca. Antes do óbito de Newman, li algures que se fez constar que empresas tabaqueiras pagavam a certos artistas para serem sua imagem de marca. Num mundo tão dado a fantasias e a teorias conspirativas, nem interessa saber se há aqui um fundo de verdade ou se é mais uma elucubração fantasiosa de gente que não tem mais que fazer ou que se entretém a fabricar novas verdades só para o seu nome aparecer, por uma vez que seja, sob a luz dos holofotes.
Vem isto ao caso porque construir uma imagem parece uma tarefa indeclinável dos tempos correntes. No imaginário colectivo, então, as imagens funcionam como um roteiro necessário de identificações e pertenças. Ou podem actuar como espelhos refractários, um conjunto de sinais que reproduzem a desidentificação com a nacionalidade que o lugar do nascimento atribui como espartilho sem fuga possível.
Já trouxe aqui, em texto anterior, o viveiro de idiossincrasias que é a sala de embarque de um aeroporto de um voo de regresso à terra pátria. Um mostruário perfeito, em pequena escala, da terra que se encontra depois de umas horas de voo até a casa. Ontem, novo episódio significativo reforçou a convicção de que as salas de embarque nos aeroportos são o laboratório onde nidificam as espécies representativas da portugalidade no seu pior. Tal como o cigarro era a imagem de marca de Paul Newman.
A sala de embarque já cheia de gente ansiosa por regressar à santa terrinha, de permeio com alguns estrangeiros em viagem de negócios e um par de turistas japoneses em demanda das maravilhas indígenas. À minha frente um portuguesinho típico, já entrado na quinta década de vida. Baixa estatura e roliço, faces rosadas, o ralo bigode que foi outrora paradigmático da lusa masculinidade. Lia um livro esotérico, sobre o "segredo" – ou de como toda a gente, desde que bem treinada pelos truques do "segredo", é capaz de atingir tudo a que se propõe só com a destreza da força mental bem subordinada aos interesses do objectivo.
Entretido com a leitura, espetou um dedo mindinho bem fundo na narina direita. Começou a escarafunchar, com movimentos que se assemelhavam a uma escavadora em plena função. Com a naturalidade de quem o faz no recolhimento da ausência de outras pessoas. Só que ali estavam à sua volta quase cem pessoas, todas à espera do voo. À cata da matéria nasal excedentária, o dedo bem fundo na narina por fim conseguiu cumprir a sua função. Deslizou para fora da narina em pose triunfante. O portuguesinho típico, com o ar aliviado, trouxe a excrescência nasal em visitação do ar puro. E para apreciação de quem partilhava com ele a sala de embarque no aeroporto.
A função ainda não tinha terminado. A escabrosa encenação prosseguiu para o acto seguinte. Encantando com a obra de arte retirada das profundezas da cavidade nasal, o homem deteve-se com atenção na excrescência que tinha acabado de subtrair ao seu leito. Contemplou-a durante alguns segundos, parecendo orgulhoso do feito. Afagou a excrescência nasal, tacteando-a com pose deliciada, imediatamente antes de a disparar em direcção do vazio. Percebi que não era o único espectador do admirável acto. De frente para o homem, havia mais gente a tomar conta dos gestos maquinais da boçalidade sem remissão. O homem, possivelmente inebriado com a leitura de tão elevado calibre, parecia anestesiado, muito distante daquela sala do aeroporto. Parecia que estava rodeado por nada nem ninguém, tamanha a naturalidade com que tratava da higiene nasal. As pessoas ao largo, entre a náusea e observação antropológica.
Os empenhados sociólogos andam enganados ao reproduzir em laboratório os comportamentos indígenas, na tentativa de lhes capturar os sinais identificativos. Perda de tempo. Se andassem pelas salas dos aeroportos onde aguardam embarque os passageiros de voos para a lusitana terra, o trabalho ficava facilitado e o resultado da investigação era mais fidedigno.