24.9.08

Regra número um das starlets de televisão: um sorriso de orelha a orelha


Há por aí um especialista do ramo capaz de elaborada explicação: dos benefícios do sempiterno sorriso. Como se fosse um perene massajar dos músculos faciais que dispõe bem. E cativa os outros, os que são agraciados com tamanha torrente de bem-estar, o contagiante sorriso que se assemelha a uma bebedeira de felicidade. Só por isso, dirão, as meninas que desfilam na televisão no papel de "apresentadoras" merecem os maiores encómios. Um serviço público que prestam, elas sim, no permanente sorriso que se esboça de orelha a orelha.


Só que a pose soa a uma indisfarçável plasticidade. Em palavras cruas, aqueles sorrisos infindáveis que se misturam com palavras, os sorrisos que emudecem as palavras que saem das bocas das "apresentadoras", são o ninho da artificialidade. Elas são meninas de plástico em todo o seu artificial esplendor. Um esplendor feito de nada, que se dilui na vacuidade daqueles esforçados, mas nada espontâneos, sorrisos. Sorrisos cansativos. Eu digo, sem recusar uma nota de mau humor: ao vê-las no interminável cortejo de boa disposição apetece ser macambúzio, o pior dos Eanes, incapaz de mostrar um sorriso. Apetece-me ostracizar o sorriso. Porque o sorriso não pode ser matéria tão fácil, pavoneado com a ligeireza das formatadas estrelas do néon televisivo. Mereciam a acusação formal, com direito a sentar o rabo em tribunal e tudo: pelo crime de banalização do sorriso.


Um dia destes, experimentei fazê-lo. Ensaiei um sorriso de orelha e orelha. Tentei mantê-lo, por uns segundos que fosse, para sentir o efeito. Ou por falta de treino, ou por inépcia congénita, fiquei cansado ao cabo de uns instantes. Cheguei à triste conclusão, que me deixa traumatizado: terei descoberto que sou sorumbático? É que me doíam os músculos faciais depois da experiência. Nesta altura, senti comiseração pelas princesinhas entronizadas campeãs da simpatia. As provações que devem passar para ostentar o sorriso emblemático o dia todo – ou, pelo menos, o tempo a mais (diagnóstico pessoal) que passam à frente das câmaras de filmar. O sortilégio da antipatia sobra para mim. Um doce sortilégio.


Pensando bem, até faz sentido que estas Barbies de aquacultura nidifiquem no espaço público. A populaça não anda longe de uma depressão colectiva. Para compensar, precisa de ver rostos, pretensamente bonitos, a exalar um convencido sorriso a toda a hora. Aposto que elas sorriem sempre. Até quando se zangam, a ira vem perfumada com o irrecusável sorriso. Porventura, até a dormir não se conseguem desfazer do estético sorriso. Tudo a bem da nação, na terapêutica dos males que atormentam a saúde mental do povaréu. As avozinhas inebriadas com o estilo airoso das sempre juvenis "apresentadoras". E um exército de candidatas ao trono por elas ocupado que teima no estilo, abusando do sorriso gratuito, desgastando o significado do sorriso. É então que o sorriso se esboroa na sua fragilidade, tão plástico irrompe.


O estilo espaventoso contraria os cânones da simplicidade. Por hoje, torna-se mais difícil cultivar a sobriedade. E ser-se genuíno. Os espectadores educados para o telelixo preferem consumir os sorrisos fátuos das embaraçosas "apresentadoras". Uns para os outros, como do código genético do telelixo faz parte o sorriso congénito das meninas. A volúpia do sorriso fácil desengana-se em si mesma. A plasticidade das "apresentadoras" e do seu sorriso faz o resto. Tomara que por aqui medrasse um povo todo sorridente, aprendendo a lição do sorriso fácil. Podíamos não largar a miserável condição – tamanha que vamos sendo passados, no campeonato dos países em crescimento, por aqueles que estavam tão longe de nós – mas seríamos, pudéssemos decalcar o mecânico e eterno sorriso das starlets de televisão, uma gente feliz. Alimentada no seu próprio sorriso.


Lamentavelmente, a gente na sua maioria adora e aplaude o sorriso dissimulado das plásticas estrelas da televisão, mas é incapaz de o praticar no quotidiano. A prova cabal que não sabemos praticar a teoria que aplaudimos. E, lamentavelmente ainda, os sorrisos de orelha a orelha só disfarçam as misérias que por aí abundam. A contagiante simpatia esbarra nas impenetráveis muralhas da realidade. O povoléu gosta é de ver as rainhas da simpatia a sê-lo, rainhas da simpatia. Depois, vão todos dormir o sono dos justos, convencidos que o mundo se deita embrulhado no mesmo conforto. Esboços de um mundo todo salpicado com os matizes do faz-de-conta. Com o timbre daqueles sorrisos tão cansativos.


Sem comentários: