Atravesso o Atlântico. Dez mil metros abaixo, o mar interminável. As horas passam, e o mar que nunca mais acaba. Primeiro sem o ver, só a pressenti-lo com o senso comum (vira as ilhas britânicas a ficarem para trás) e a ajuda da tecnologia (num ecrã à minha frente desfila o trajecto que o avião sulca). Só o pressentia, tapado que estava por umas nuvens densamente acasteladas que coreografavam o avião em moderada turbulência. Depois veio a bonança. E o interminável espelho de água lá em baixo. Ao início, de águas mansas, um chão plácido onde se deitava o largo oceano. Mais tarde, porventura por uns ventos que mergulhavam na água, discernia-se uma ondulação brava, a espuma das ondas furiosamente soltando-se da parte azul do mar.
Foram horas a fio só com o mar como distante chão. Pus-me a pensar: há quem tenha como ousado projecto de vida atravessar o Atlântico embarcado num navio da marinha mercante. Só se for por contrição contra um mal tremendo em que se debatam, tamanhos os dias de viagem apenas com o mar a cercar a embarcação por todos os lados. Ou serei de uma impaciência relapsa, incapaz para me entregar a refrigérios monásticos.
Dizem que às vezes as pessoas precisam dos seus refúgios. O lugar onde as coordenadas interiores são calibradas, por carentes de calibragem estarem. Um retiro, tão monástico como os retiros conventuais onde impera a frugalidade dos hábitos, onde até o silêncio dói na sua pungência. Não sei quem uma vez me contou esse desejo secreto – de se fazer embarcar como convidado do navio mercante e jogar-se corajosamente à solidão da terra por dias a fio. Na altura escutei o devaneio – já então me parecera apenas um devaneio, juvenil devaneio – e não lhe prestei atenção.
O defeito será meu, pela impaciência que adivinhei caso fosse eu o embarcadiço, por causa da terra firme que tanto haveria de se demorar. Um dia deitei-me a pensar no assunto, a supor-me desvairado para saltar do cais para o convés que haveria de conhecer em todas as suas rugosidades. Tive medo. Que o interminável mar me engolisse, no navio tão frágil diante da força assustadora do Atlântico numa das suas ensandecidas tempestades. Ou, à míngua de borrasca marítima, o pavor do tédio. A imensidão das águas, dos milhares de quilómetros de interminável oceano. Se custa a atravessar na velocidade supersónica do avião, quanto não seria o tédio dos dias de clausura no convés do navio à espera da salvífica terra firme? Tive medo, já com a cabeça recostada na almofada, que me custa a augurar prisões, quaisquer privações da liberdade. Nessa noite, o sono tardou e percorreu toda a noite em sobressalto.
Ao demorar o pensamento sobre o assunto, dias mais tarde, houve um esgar de dúvida no anterior diagnóstico tão célere: como seria admirável testemunhar uma brava tempestade no meio do oceano – surgiu o quadro, tentador. À memória vêm imagens de navios que ficam entregues nas mãos das ondas que revolvem o mar em chocalhos violentos, a embarcação desaustinada de um lado para o outro, como se perdesse naqueles momentos o seu próprio destino, incapaz de domar o rumo por onde queria seguir. A água irrompendo contra o casco ferrugento, o restolho do mar bravio em suas próprias ondas cadentes a varrer o convés. Um vento implacável, sem deixar os marinheiros sequer espreitar o cheiro mórbido que a tempestade cavalga.
Agora seria a minha vez de confessar devaneio juvenil. Impraticável devaneio. Para ser espectador de uma tempestade em alto mar, onde as tempestades debitam toda a sua devastadora força, teria que andar ainda dias incessantes até o navio beijar os braços da intempérie. Até lá, definhava de tédio. Com o mar repetitivo, ora um lençol onde haveria repousado a quietude, ora a agitada cama ao sabor da brisa fresca, a ser o repulsivo cenário de onde irromperia a impaciência.
As promessas, quando são esperadas com ansiedade, às vezes desaguam em decepção. Esgotado o interminável mar, quando já começava a acreditar que era infinito, lá em baixo a árida e deserta terra castanha da Terra Nova. Não era grande a diferença.
(Em Edmonton, Canadá)
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