Mergulhados no vezeiro etnocentrismo, estamos mentalizados que a bizarria vem quase sempre de longínquas paragens. Os sítios que, de acordo com os nossos padrões, rotulamos como lugares exóticos. São os sítios onde acontecimentos incomuns baralham os padrões daqui. Curiosos, damos uma espreitadela no acontecimento raro, como se andássemos por um jardim zoológico à cata de espécies que só em cativeiro teremos oportunidade de ver em carne e osso. Depois soltamos um esgar arrogante, a meias com um sorriso sarcástico, que sela a, acredita-se, nossa tamanha "superioridade civilizacional" (assim mesmo, entre aspas). É nessa altura que não damos conta como os planos se invertem: e o que se pensa ser superior desagua numa escusada inferioridade.
A curiosidade tem algo de antropológica. Ao sermos espectadores de um episódio fora do comum, apetece interrogar pelas causas. Que traços culturais específicos o possibilitam? Que idiossincrasias particulares se combinam como nutrientes do acontecimento que baralha os nossos quadros mentais? Depois deixamos funcionar as gavetas fáceis onde as coisas se encaixam em simplistas categorias. A bazófia de cá cauciona o convencimento de que somos superiores aos outros, logo engavetados no rótulo de gente que pertence a lugares atrasados. Mesmo quando há indicadores que mostram que o subdesenvolvimento de outrora é assunto encerrado, com alguns países (sobretudo asiáticos) a mostrarem uma pujança económica que faz inveja às economias pouco mais que estagnadas do auto-proclamado "mundo desenvolvido".
Puxando lustro às convenções: a Tailândia é um país atrasado? Para os auto-convencidos da notável superioridade civilizacional do "ocidente", sim, é atrasado. A prova de como esses assertivos juízes estão errados nem se funda nos indicadores económicos e sociais que seriam suficientes para negar o rótulo. Por hoje, vou provar que a Tailândia vive em maioridade social por causa da decisão tomada pelo primeiro-ministro, que se demitiu ao ter sido apanhado a participar num programa televisivo sobre culinária – que pecado imperdoável...
Dou de barato que a gente por dentro da política se deve dar ao respeito, evitando dar o flanco para a chacota dos outros. E vou dar de barato que a presença num programa de televisão sobre culinária não condiz com a solenidade do cargo de primeiro-ministro. Vou aceitar estas premissas, mesmo que delas discorde. Raciocinando através delas, a pergunta sacramental: em que outro lugar do mundo, mesmo nos que reclamam para si a condição de avançados países, este episódio daria lugar à deposição do líder do governo (ou de quem quer que seja)? Logo fermenta outra pergunta: não é factual que em países – chamemos-lhes assim: sérios –, polémicas mais graves ou escândalos vistosos não servem para remover políticos das sinecuras que ocupam?
O primeiro-ministro da Tailândia deu o exemplo, acossado por todos os lados porque muita alma tresandando uma impoluta moralidade terá ficado ofendida com a banal participação num banal espectáculo de culinária. Se calhar, banalidade a mais, incompatível com a solenidade do cargo. Demitiu-se. Noutros sítios, homólogos seus teimam em ficar no lugar mesmo quando há histórias mal contadas acerca da estalinista concepção do curriculum vitae. Afinal, onde está o país atrasado? E aqueles que satirizam a Tailândia, riem do quê?
Há uma maneira diferente de olhar para o estranho caso de um primeiro-ministro empurrado para a demissão só por ter mostrado na televisão os seus dotes culinários. Este "só" não é inocente, nem aparece por acaso. Caem os parentes na lama a alguém por confessar em público que gosta de cozinhar, mostrando de seguida os dotes culinários? Mesmo que esse alguém seja tão importante como um chefe de governo? Por acaso a culinária é uma arte de proscritos, uma arte menor onde apenas habita uma ralé? Se assim fosse, quem frequentava restaurantes? Quem tirava o prazer da gastronomia, das suas inventivas criações? O primeiro-ministro da Tailândia quis mostrar uma face humana, uma humildade que os residentes no poleiro da política não estão acostumados a praticar. No rescaldo, foi crucificado. No rescaldo, também, a nobre arte da gastronomia nunca foi tão mal tratada.
O que mais estranho é a ocultação da dimensão simbólica da presença do primeiro-ministro da Tailândia naquele programa sobre culinária. Para o mal ou para o bem, não é o primeiro-ministro que cozinha os destinos do país?
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