A maior vantagem da independência é o distanciamento com que aprecio as manobras da governação e do combate partidário. Seria sempre acusado de estar a defender uma facção se, pelo cunho da crítica, fosse militante de um partido ou pelo menos estivesse nas suas proximidades. É o que acho mais intrigante na cegueira que toma conta de pessoas, muitas delas inteligentes, que fazem ataques à pessoa que critica os seus sem terem o cuidado de rebater, um por um, os argumentos que são o chão onde assenta a crítica.
A reacção desabrida também tem como alvo a abater certos opinadores profissionais que, não tendo filiação partidária conhecida, vão dando sinais de que estão algures noutro lado da barricada. É suficiente para os argumentos dos críticos serem desconsiderados. De permeio, se preciso for, soltam-se ataques ad hominem. Os leais defensores dos mandantes nem percebem o enxovalho a que se abraçam quando tropeçam nos ataques pessoais aos críticos e se distraem do que é importante: os argumentos, as ideias.
Longos vão os prolegómenos. Agora, ao contexto. Da maldita propaganda política, contra-arte onde triunfa quem mais e melhor iludir o destinatário da mensagem, a gente que vai votar. Não quero acreditar que haja estudos sérios que provem que uma imensa maioria das pessoas se deixa atrair pelas artimanhas dos feitores da propaganda, trazidas aos holofotes pelos políticos sucedâneos de actores de terceira categoria. O relógio do tempo testemunha a propaganda mesquinha, a propaganda que espezinha a dignidade das pessoas, a propaganda que é um atentado à inteligência dos eleitores, a propaganda que instrumentaliza – a propaganda na sua indigência. A propaganda que mente indecorosamente. O diagnóstico já é sombrio quanto baste. Os amadores que tudo fazem para se manterem agarrados ao poder tratam de juntar mais alguma fuligem ao cenário.
Anteontem foi um dia magnífico para a propaganda. Tenho o cuidado de retocar a frase: para a propaganda no que ela foi transformada, na desprezível propaganda que desvirtua a democracia. Um fartote de ministros e secretários de Estado semeados por escolas que tiveram o privilégio de inaugurar o computador portátil "Magalhães". Depois da vergonhosa propaganda encenada na anunciação da iniciativa, pensava-se que o governo tivesse mais recato quando chegasse o dia de desembrulhar os primeiros "Magalhães" nas escolas agraciadas. Afinal, fora abundante e concludente a prosa a denunciar o embuste do muito que foi solenemente anunciado em relação ao "Magalhães".
Quando se acreditava que esse episódio tinha ficado registado nos anais da propaganda lamentável, lá saltaram os governantes, em coro, em diligente visita às escolas onde as criancinhas exultavam com prenda tão generosa. Ocasião para ouvir e ler afirmações que entram no panteão do ridículo: o ministro que tutela a comunicação social e faz a gestão da propaganda oficial a assegurar, pela enésima vez, que ficam para a "história", e obviamente pelos melhores motivos; ou o timoneiro a conviver atrapalhadamente com os petizes, tentando usar da linguagem catita a que a criançada está acostumada; ou um qualquer secretário de Estado, impassível diante da rara oportunidade de brilhar ao lado dos superiores, a alvitrar que até os "senhores jornalistas" deveriam ter um exemplar do brinquedo. Estes amadores pareciam mais excitados do que os petizes que se abraçavam à maravilha da tecnologia tirada da cartola. Desbragamento em estado puro.
Foi tudo tão reluzente, tudo tão excitante, que a comitiva terá regressado aos ministérios respectivos a pensar como é inevitável que a populaça lhes renove o mandato. E a maioria absoluta. As pedras da excitação foram, porém, a anestesia para a grotesca propaganda que usou as criancinhas como figurantes necessários. Agora que tanto se fala na protecção da imagem – a mesma RTP servil, minutos mais tarde, passou uma reportagem sobre diabéticos e todos os pacientes apareciam na imagem com uma faixa a tapar os olhos que impedia a identificação – e tantos cuidados se colocam na protecção dos interesses das crianças, o governo tão esplêndido escorregou, sem dar conta, na sua própria casca de banana. Inocentes e indefesos petizes no papel de figurantes do acto de propaganda.
Dizem que há limites para tudo. Eu acredito que mesmo os limites se ultrapassam. Aquela propaganda toda, com os infantis estudantes a servirem os propósitos da propaganda, escolheu o seu próprio rótulo: pornográfica propaganda. Por um momento, desejei que a minha filha fosse aluna de uma das escolas que mereceram visita feérica de suas excelências. Só para o grato prazer de colocar essa gente em tribunal.
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