2.9.08

Obras de santa Engrácia


Costuma-se dizer: os engenheiros são uns ineptos. Não são capazes de planear as obras públicas como deve ser. E não têm mão nos executantes que passam tempo demais a apreciar a cerveja que escorrega pelo gargalo e a disparar piropos de mau gosto às donzelas que passam. O resultado: obras que demoram muito tempo, sempre tempo a mais. Obras mal feitas, ruas escavacadas e depois indevidamente refeitas, ruas remendadas.


A analogia: a vida é uma obra de santa Engrácia? Um projecto, sempre um projecto, ou uma sucessão de projectos sempre em andamento. Os projectos raramente terminados. Quando se pensa que o projecto está à beira do fim, alteia-se um imponderável e o projecto fica adiado, ou em suspenso. Às vezes, é outro projecto que se intercala, tornando mais densa a rede de projectos em que se revê a vida. É como se houvesse um diálogo de surdos entre dois hemisférios que habitam dentro de nós: há o arquitecto que fervilha em tempestade intelectual, ansioso por esboçar novos planos para a vida que recusa a monotonia; e o engenheiro que se inquieta de cada vez que o arquitecto acorda em constante frémito. O segundo, incapaz de acompanhar a vibrante actividade do primeiro. Dos dois a descompasso, um caótico estaleiro onde a confusão se espalha por todo o lado.


Se é isto a vida, uma gigantesca obra de santa Engrácia, como podemos apontar o dedo aos engenheiros civis?


Não há vestígio de autocrítica ao pesar a vida na báscula dos planos que se inclinam para a ausência de resultados. Pois a vida é uma experimentação perene. Podem as pernas preferir as avenidas já conhecidas, evitar pisar terrenos onde pesa a incógnita das paisagens nunca visitadas. Não admito que haja quem só queira teimar nos recantos revisitados à exaustão, por temor ao desconhecido, por demissão da febril imaginação que dá alento a projectos, ou por temer que a ousadia dos muitos projectos acabe por desaguar na frustrante sensação do vazio. Porventura não serão os resultados que contam. É o que se ensaia, mesmo que seja para abandonar ao cabo de pouco tempo. Ainda que, ao olhar para trás, estejam espalhados pelo chão os cadáveres dos muitos planos que não foram além do seu esboço.


Há uma expressão em inglês que captura a essência da vida em permanente estaleiro: "work in progress". Em tradução adaptada, obras em andamento. No caderno de encargos vão sendo anotados mais planos, ou alterando os que já foram lavrados na memória descritiva. Por vezes, a pedra tumular em projectos que deixam de fazer sentido. Sem dramatizar. É o curso da vida, ou os acontecimentos que dependem de outros, ou as vicissitudes, ou os percalços que obrigam a redesenhar planos ou a traçar novas bissectrizes que alteram, e muito, projectos anteriores.


Quando damos conta, parece que a existência se demora nos meandros dos planos que se arquitectam. A árdua incumbência de os passar do papel à prática, quando se convoca o engenheiro que adoça a vida na concretização dos planos, é tarefa que fica adiada quando o imaginativo arquitecto descobre novos projectos. De projecto em projecto, inacabadas as muitas obras que vêm de trás. A certa altura, uma tremenda babilónia resume a existência onde se perde o rasto aos tantos projectos registados. Uma desorganização mental? Ou talvez não, apenas o notável devaneio de salgar a existência com constantes desafios que impedem o adormecimento da vida. Ao de cima, a complexidade da labiríntica teia onde se acumulam ferros em estaleiros que tingem a existência com os coloridos horizontes que se anunciam para um dia vindouro. Não interessa que haja cantos da vida onde os ferros de estaleiros abandonados estejam tomados pela ferrugem, sinal do abandono de projectos a que se perdeu o rasto, ou até sítios onde os ferros retorcidos são a imagem de planos já tão antigos que se perdem na poeira da memória.


Não há grande mal que pese o estigma das obras de santa Engrácia sobre uma vida. Assim como assim, o mal maior é quando se extinguir o fio da vida. Nessa altura, todas as obras se encerram, definitivas. Uma pedra que se abate sobre os projectos. Que deixam de o ser. Obras e de santa Engrácia.


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