22.9.08

Ladrão que roubo ladrão tem cem anos de perdão


Das notícias deliciosas. Um manjar opíparo que encanta os sentidos. Há poucas assim, enegrecido o panorama noticioso por entre a tristonha penumbra do que o mundo é e a atracção pelo sensacionalismo que atira a imprensa para uma qualidade que não se distingue do lixo. Só que o mundo tem coisas belas para oferecer. Por isso é que há poesia – ou talvez haja poesia porque os poetas andam arredios do mundo.


Seja como for, há pontuais oferendas que destilam o perfume do encantamento. Diante delas, até os empedernidos cépticos esboçam um sorriso. Até eles, por um momento que seja, se enamoram pelo mundo de que tanto desconfiam. Nem que seja para provar que o pessimismo metódico tem dias que esbarram no seu desmentido. Nessa altura, eventos esparsos rompem com o petrificado pessimismo. Que se descobre na sua surpreendente fragilidade: afinal as convicções do céptico militante também se esboroam quando os olhos testemunham episódios que são a negação daquela militância. Desde que haja arejamento mental para não bater a porta aos luminosos acontecimentos que ensaiam uma pontual manifestação nos antípodas do pessimismo costumeiro.


Na semana passada, a onda de criminalidade que cavalga – negando a ficção em que vivem mergulhados os maravilhosos governantes – teve o seu momento inusitado. Uma pandilha atacou uma repartição de finanças perto de Lisboa e de lá saiu com o pecúlio de impostos. Estou a imaginar os moralistas do reino, aqueles que acreditam piamente que todos temos que pagar impostos porque esse é o preço da socialização que garante a ausência de selvajaria. A vê-los, indignados, perante este crime de lesa-majestade. Suprema ousadia, dirão. Que assaltem bancos, ainda se entende: um banco é uma entidade privada e, que se saiba, a Caixa Geral de Depósitos (CGD) não reúne as preferências dos gatunos especializados em bancos. Eles lá sabem: o banco do Estado não se assalta, ou assalta-se menos, ou assalta-se porque os desesperados profissionais do crime, do alto da sua ignorância, nem sabem que a CGD é o "banco de todos nós".


A lógica será esta: o que pertence ao povo nunca devia ser objecto de roubo. Os sacerdotes da bonomia do Estado protestarão duplamente contra os patifes que irromperam pela repartição de finanças e roubaram o pecúlio dos impostos. Por um lado, os impostos são como as esmolas das igrejas – intocáveis. Devia haver decoro entre a gatunagem potencial, uma espécie de código de conduta, os mínimos necessários que até ladrões não se escusariam a respeitar. Os impostos são o preço necessário para a construção da sociedade, um instrumento ao serviço do progresso da nação – assim nos ensina a doutrina oficial. Por outro lado, neste socialismo em acção em que vivemos, é de bom-tom concordar com o preceito de que os ricos pagam mais impostos em favor dos pobrezinhos. Aquilo a que se convencionou chamar "redistribuição". Eis a inadmissível ousadia dos gatunos da repartição de finanças: impediram que aquele dinheiro dos abastados fosse redistribuído pelos necessitados.


Como esta gente deve estar tão indignada, dou daqui umas sugestões para evitar furtos destes no futuro. Mudar as leis, por exemplo, para criminalizar os roubos de repartições de finanças como crime de terrorismo contra o Estado. E, porque não, a retirada de todos os direitos humanos dos pérfidos assaltantes de impostos que pertencem ao povo, se por hoje há quem defenda que as garantias fundamentais podem sofrer entorses se elas forem obstáculo a interesses supremos. Uma espécie de Guantánamo onde seriam enclausurados os gatunos de impostos, uma lição que impediria novos roubos de impostos. Para grandes males, grandes remédios. Os grandes desígnios não podem soluçar perante estes imponderáveis.


Eu tenho uma visão muito diferente sobre o assalto à repartição de finanças. Que me perdoem os que acharem a ideia despropositada, ou longe dos padrões convencionais por onde somos aconselhados a pisar. Se confessar a veia anarquista talvez me desculpem o excesso, mas continuo a achar um imposto sinónimo de roubo – um roubo com a aquiescência das gentes, tão formatadas para pagarem sem protestos. Ora se um imposto é um roubo institucionalizado, quem rouba um ladrão não será decerto ladrão normal. Será ladrão que merece condescendência, se não até aplauso.


É que, nem de propósito, foi o primeiro-ministro a que temos direito que se lembrou de inventar uma taxa contra as empresas petrolíferas a que deu o nome de "taxa Robin dos Bosques". Não era Robin dos Bosques que roubava aos ricos para dar aos pobres? Com a mania das obras faustosas, pagas com impostos desviados dos contribuintes à força, até parecemos um país muito rico. Se os impostos servem para pagar devaneios destes, o seu roubo simboliza a subtracção de quem é rico. E todos concordaremos que o produto do roubo aproveita a alguém que é mais pobre, muito mais pobre.


Diante disto, só um demorado aplauso aos ladrões da repartição de finanças. Sem que se entenda o diagnóstico como uma aproximação ao marxismo. Robin dos Bosques não foi contemporâneo de Marx. E, que se saiba, Marx não se inspirou em Robin dos Bosques.


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