Às vezes, os passos trocados desaguam num terreiro onde se alcança uma teia de aranha. Espessa teia de aranha, como se fossem as areias movediças onde os pés se afogam ao cabo de uma fatal distracção. O pior é quando, naquela encruzilhada, o sentido escolhido não foi o resultado de uma distracção, antes o exercício da convicção. Nessa altura, arrependimento algum possui a alta magia de subtrair o corpo da teia de aranha, seu leito fatal.
O corpo então debate-se nos fios viscosos da teia. Que se enredam no corpo, desmultiplicando-se vindos do nada. No seu afã, o corpo parece deslaçar-se de uns quantos fios da grande teia. Só que logo a seguir há outra parte do corpo já tomada por um entrelaçado que imobiliza um membro, o torso, outra parte qualquer. Quando a escuridão varre a luminosa luz diurna, a teia de aranha parece espessar-se mais ainda, aprisionando o corpo sem remissão. Adormece os dedos das mãos e dos pés, que deixam de se debater, consumidas as forças contra o paredão inamovível daqueles fios entrelaçados. E parece que na noite não tem fim.
E, contudo, a teia de aranha é um lugar de contradições. Nela se entretece uma multidão de frágeis fios salivados pela aranha. Vistos como peças isoladas, os fios são de uma fragilidade assustadora, quebradiços ao mínimo toque. Só que a viscosa teia em que se tecem é uma impenetrável parede. Onde cada fio isolado mostra fraqueza, no seu conjunto, tecidos numa intrincada teia, agigantam-se numa férrea estrutura onde as presas encontram a sua sepultura, só à espera que o aranhiço chegue para a degustação.
Não é o caso. Apenas os movimentos manietados pela solução viscosa que se desprende de cada fio, uma gelatinosa substância que anestesia os movimentos. A certa altura, o corpo deixa de se debater. Faz a concessão final. E, nessa altura, é como se o corpo passasse a fazer parte da teia de aranha. Salivando ele também os seus próprios fios. Tecendo uma carapaça onde se refugia do que lhe é exterior. Apanhado numa teia, transforma-a na sua fortaleza inacessível. Uma teia reflexiva, não uma teia predadora. Não é um emaranhado para atrair à armadilha quem se ofereça como sua presa. Ao contrário, a espessura salivada retrai estranhos e curiosos. Os fios viscosos, como se fossem as paredes untadas que impedem a escalada.
A teia, um sinal retemperador. Dos males que o parecem ao primeiro contacto. Que, todavia, se tornam num arremedo profiláctico, uma reserva mental que protege, em antecipação, dos alçapões traiçoeiramente espalhados, dos aleatórios alçapões. Não é o fermento da desconfiança metódica. Apenas um também metódico recato do mundo em redor. Porventura com uma maleita associada: o temerário encasular, como se desviar o olhar das doenças pungentes mostradas pelo mundo fosse vacina individual.
Os gestos enérgicos que ao início tentavam deslaçar o corpo da poderosa teia deram lugar à tranquila pose diante das coisas do mundo. Em vez de ser presa da teia tornou-se feitor da teia. Afinal, a concessão que chegou com a noite implacável fora a poção mágica que tanto procurara algures. Estava por entre os sucessivos fios viscosos que enleavam o corpo no casulo salvífico. Às vezes, o poço fundo, o assustador e escuro poço que não parece ter fundo, encerra misteriosos lugares que se oferecem como sítios de onde sussurra a regeneração. É como se os olhos andassem perdidos, por tempos infindáveis, a olhar para o lado errado. Como se um pedaço do cérebro angustiado pelas sombras nutrientes do desconhecido, temendo os insondáveis caminhos, se recusasse a irromper por aí. A ousadia da aventura desvela o lado que sempre estivera escondido. Afinal, o desconhecido na sua terapêutica forma.
A teia de aranha deixara de ser o manancial de pesadelos. Era o segredo ocultado pela espessura dos fios que não atraiam ninguém. Do lado de lá dos fios entrelaçados, sem receio daquela parede viscosa, o ar enfim purificado. Um mundo todo diferente. Mesmo que seja feito de uma espessa manta de ilusões.
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