4.9.08

Ainda há cavalos no centro da cidade


A grande urbe. Onde irrompem altos edifícios que assustam os que têm vertigens das alturas. Onde o ar rarefeito pelos gases de escape dos veículos empresta a nota poluente à atmosfera, tornando-a doentia. Onde, se há florestas, elas são um misto de cimento e tijolos e asfalto. Onde o registo dos tempos testemunha o emagrecimento das zonas verdes, cedendo passo às florestas de betão que sinalizam a urbanização selvática. O lugar urbano demite os vestígios de ruralidade que ainda vêm de trás, hoje apenas memórias registadas em álbuns fotográficos.


E, no entanto, há espasmos de ruralidade a teimar bem no centro da cidade. Ainda ontem, na dobra de uma esquina, uma carroça puxada por um cavalo. Era conduzida pelo lavrador, que trazia no reboque uns altos recipientes de, imagino, lavadura para as reses. Já ia longo o tempo em que não entrava pelos olhos uma ilha de ruralidade. Fez-me recordar os tempos de infância, quando havia zonas da cidade que eram ainda dominadas por largos espaços onde havia agricultura. Durante alguns anos, ao içar a persiana na alvorada, a paisagem que acordava diante dos meus olhos era uma extensa quinta que se espraiava até à foz do rio Douro. Com vacas e ovelhas a pastar, ao lado de um espaço onde se cultivavam vegetais que nunca cheguei a saber o nome. Numa extremidade da propriedade, uma pequena casa onde habitavam os agricultores.


A modernidade que empurrou as pessoas para dentro da cidade tratou de levar aquele vestígio de ruralidade. Anos mais tarde, a alvorada aclarava meia dúzia de prédios altos onde antes esteve o largo campo de pastos e vegetais. E só uma nesga de rio por entre os prédios entretanto levantados. Se continuar a resgatar recordações, por estes dias de Setembro os campos de milho estavam no seu auge e as espigas cresciam no alto das canas mais altas que um adulto. Mesmo ao lado, o campo do lavrador onde as pessoas iam comprar leite acabado de mugir, transportando-o em vasilhas metálicas. Vivia na cidade, na segunda cidade do país, rodeado de ruralidade.


Nesses tempos, os traços urbanos eram uma ilha no meio de tanta ruralidade. Contudo, uma maré urbana estava a subir, imparável. Utilizando a expressão dos especialistas, a "pressão urbanística" tratou do resto. Tratou de inverter as variáveis. Aos poucos, como a maré a encher que molha a areia dantes seca sem que muralha alguma a consiga deter, os campos perderam o seu verde e foram tomados pela parafernália de betão erguido aos céus. O rebanho de ovelhas que vinha pastar no relvado em redor da minha casa, no relvado caótico que a câmara municipal nunca tratava, desapareceu com a urbanização em redor. Nessa altura, havia visitas que ficavam surpreendidas com os vestígios de ruralidade mesmo dentro da grande cidade. Julgavam um sinal refrescante, uma ilha que libertava as amarras da asfixiante e imparável urbanização.


Estes anos todos depois, a estranha sensação de não sentir nostalgia dessa ruralidade que abraçava os prédios onde se passou a infância e a adolescência. O estranho desamparo ao deparar com um vestígio de ruralidade espetado na cêntrica urbe. Há quem se encante com os vastos campos onde o betão está impedido de arremeter. A natureza em estado puro, com o ar imune à fatal poluição. Eu, que nasci e vivi na cidade, e me fui habituando à "pressão urbanística", sinto-me paradoxalmente asfixiado com as vastas paisagens despidas de edifícios. Bem entendido, asfixia apenas na hipótese de um rural lugar acolher a residência, pois continuo enamorado pelas paisagens que emprestam toda a sua rural beleza. Mas apenas como lugares de deambulação turística. Não como lugar para acolher a residência habitual.


O cavalo a empurrar o atrelado conduzido pelo lavrador é um corpo estranho dentro da cidade. Que não pertence à grande cidade. Motivo de estupefacção. Trazendo desconforto a quem se habituou, para o bem ou para o mal nem interessa, a viver rodeado pela floresta de cimento e tijolos e asfalto, à constante míngua dos espaços verdes que iam sendo subtraídos para trazer mais gente para dentro da cidade. E, afinal, as cidades não são feitas para aglomerar milhares e milhares de pessoas? No paradoxo final: parece que as pessoas, na urgente necessidade de habitarem junto umas das outras, são adversárias da natureza.


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