17.9.08

Da pérfida moral que as criancinhas aprendem nas historietas infantis


Agora que a minha filha descobriu que sou um exímio contador de histórias infantis ao deitar (…), começo a descobrir certas subtilezas dessas historietas. E fico surpreendido como aquela gente que cultiva o politicamente correcto, aquela gente tão pressurosa em formatar as cabecinhas de um rebanho que querem ordeiro, apascentando em terras impolutas de devaneios consumistas e materialistas, ainda não se tenha lembrado de verberar as historietas infantis. Ou andam distraídos, ou não contam histórias infantis aos seus filhos. Ou narram apenas histórias que se encaixem nos cânones dos modernismos politicamente correctos, ou versões dessas histórias que venham extirpadas dos vestígios que possam corromper o "novo homem novo" que se espera que as criancinhas venham a ser. Ou, simplesmente, não têm filhos.


Honestamente, fico espantado como estes sacerdotes do pensamento impoluto, sempre vigilantes para impedir desvios que nos coloquem para além do limiar da sua moralidade necessária, ainda não tenham percebido como as histórias infantis são uma perturbante fonte que tira os meninos do caminho certo. Ainda por cima, esta gente é tão dada a esotéricas teorias da conspiração que menos se entende que ninguém tenha protestado contra os desvios (decerto instigados por alguém a soldo do grande capital) a que os petizes são levados pela insidiosa mensagem das histórias infantis.


Passo a exemplificar: lia o "Gato das Botas" e apercebi-me como toda a história formata a cabeça das criancinhas de forma tão errada. A fábula gira em torno de um gato servil, um gato falante e maquiavelicamente inteligente. Munido de umas altas botas, que lhe darão poderes mágicos para congeminar as artimanhas que favorecem o seu dono, vai compondo as peças de um puzzle que manipula só para proporcionar ao dono, um jovem afundado na pobreza, uma faustosa vida futura. Primeira ilação da insídia contida na história: os meninos aprendem que a pobreza não interessa a ninguém. Primeiro laivo do hediondo capitalismo que coloca o bem-estar material acima de tudo. Começam a aprender pela cartilha errada – diriam, se estivessem atentos, os sacerdotes pressurosos do lirismo dominante.


O Gato das Botas congeminou um plano para casar o rapaz seu dono com a princesa herdeira do reino. Segunda ilação: as criancinhas são convidadas a mergulhar num mundo fantasioso, feito de belas princesas, imaculadas princesas, que pertencem a anacrónicos reinos. Haverá aqui o dedo de gente a soldo do capitalismo, como já sugeri. Gente que é também saudosa da monarquia. Mais um ensejo para as vozes que alimentam teorias da conspiração protestarem contra o enviesamento das historietas infantis. Narram um mundo de fantasia, um mundo que está em extinção. Uma realidade que teima em manter vivos traços ancestrais e reprováveis (reis, princesas, monarquias) dentro da modernidade que querem moldar ao seu jeito.


Onde os valores preocupantes – ou a ausência deles – se mostram em toda a sua pujança é nos detalhes do plano congeminado pelo Gato das Botas. Encena o afogamento do dono à passagem da carruagem real, motivando a comiseração do rei e da princesa pelo pobre rapaz que ia perdendo a vida afogado. Depois convence todos os camponeses que assistiam à passagem da carruagem real a dizerem que conheciam o rapaz e que ele é o marquês de Carabás. A lamentável apologia da mentira. E a apologia da instrumentalização do outro, levando-o a mentir como meio para atingir um certo objectivo. As criancinhas, aprendizes de Mourinho pela mão da história do Gato das Botas.


A perfídia total que açambarca as cabecinhas em formação tem o seu zénite quando o Gato das Botas se apropria de um castelo, transformando o gigante seu proprietário num rato que de imediato se transforma em sua refeição. Portanto, as crianças aprendem que o direito de propriedade é muito relativo, diria, volátil. De seguida, o Gato das Botas recebe o dono, na companhia do rei e da princesa. O rei rende-se a tanta riqueza. Chega a dizer: "Tanta riqueza, senhor marquês. Tem que casar com a minha filha". Lá está: como não houve nenhum sacerdote das coisas politicamente correctas que tenha apontado o dedo a esta lamentável instrumentalização dos petizes que hão-de ser os senhores do futuro? Como é que nunca se insurgiram contra a banalização dos afectos? Para, no final, concluírem que casamentos de conveniência, ao arrepio da vontade das mulheres, não acontecem apenas nas sociedades islâmicas. Nesta altura, entrariam em cena as exacerbadas feministas para denunciar o viés de género das histórias infantis. Que eu saiba, nunca o fizeram. Incompreensivelmente.


Admirado. É assim que me encontro depois de ler a história do Gato das Botas. Não pela história. Mas pelo silêncio dos sacerdotes do politicamente correcto. Por nada dizerem contra esta maquinação que – de acordo com a sua habitual retórica – formata os monstrozinhos do futuro, um exército de gente que aspira a parecer o que não é. Os Vale e Azevedo de tempos vindouros.


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