Há por aí muito intelectual que reclama a paternidade do refrescamento da democracia. Desiludidos com o rumo da democracia tradicional – a democracia parlamentar representativa – querem orientar a democracia para formas que, argumentam, se aproximem da participação popular. Sem que esta participação se resuma, como agora, a depositar o voto nas urnas de cada vez que há eleições. Acham que é uma participação esparsa. A pouca assiduidade sela a reduzida qualidade da democracia que nos é oferecida. Entre as eleições, os eleitos actuam de forma pouco democrática: fazem o que bem entendem, quantas vezes alijando-se do cardápio de promessas eleitorais que terão caucionado o triunfo nas eleições. Estes intelectuais protestam a crise da democracia tradicional. Provam-no com os miasmas que consomem a democracia pelas entranhas: a mediocridade dos políticos, já que a política só consegue atrair os menos capazes; e, talvez até por isso, o estigma da corrupção que tomou conta do processo político.
Não tenho problemas em coincidir com estes intelectuais no diagnóstico. A coincidência pára por aí. Quando olho para as receitas prescritas por estes pretensos curadores da "boa democracia", prefiro continuar com o que tenho. Apesar de todas as suas maleitas, apesar do cortejo grotesco que, com o tempo, dá sinal de uma patologia que se afunda no seu lodaçal. Apesar dos medíocres que sucedem aos anteriores medíocres, tornando mais densa a rede de mediocridade – quando se pensava que seria impossível ir mais abaixo no poço da mediocridade.
Aqueles curadores propõem a reconfiguração da democracia. Ela deve-se modernizar. A cidadania plena exige mais participação das pessoas na governação do que as afecta. A modernização da democracia depende da vontade para ultrapassar o colete-de-forças do modelo tradicional. A democracia representativa já não é suficiente. Acusam os actos eleitorais de não terem capacidade para exprimir escolhas racionais. Os votantes são ofuscados por manobras eleitorais, pelo intenso marketing político que oculta o que não convém e mostra o que é conveniente mostrar, mesmo que sejam ingredientes acessórios. Entre as eleições, reduz-se a pouco mais que nada o escrutínio efectivo de quem foi escolhido para governar. Até porque a governação se distingue pela arte da ilusão, pelos tiques que uma retórica bem estudada consegue passar, pela imagem cirúrgica que desvia a atenção para as margens do acessório.
A alternativa é a "democracia participativa". Os seus defensores aparecem como milagreiros, os indispensáveis arquitectos da renovação do sistema político. Dotados de verdades incontestáveis. Quem se apresenta senhor de verdades divinas merece o estatuto de desconfiança. A desconfiança de que devem ser credores os infalíveis deste mundo. O que propõem vem enfeitado com um atraente papel de embrulho. Não devia haver decisões sem se darem a conhecer a quem fosse por elas afectado, antes de serem decisões. Os intelectuais da "democracia participativa" enamoraram-se das assembleias populares onde todas as decisões seriam tomadas. Propostas, discutidas, votadas (e de braço no ar, para melhor se controlar a vontade dos interessados) e, só então, adoptadas. É encantador, o modelo. As gentes interessadas teriam sempre uma palavra a dizer. No final, argumentam, o processo político teria uma legitimidade redobrada.
Quando as coisas são assim tão lineares, costuma haver uns inesperados grãos a ensombrar o raciocínio e as lapidares e cristalinas conclusões. As assembleias populares são o ensejo para os intelectuais destas causas poderem fazer vingar as suas ideias, dotados do notável poder de persuasão tão próprio da sua incomensurável inteligência. Põem a sua inteligência e dotes de retórica ao serviço da arte da manipulação. Para influenciarem a discussão e conseguirem condicionar a votação. A desconfiança prossegue: são bem capazes de infiltrar agentes, que actuam como seus capatazes, para orientar a discussão para os resultados que querem atingir. Como se sabe, a inteligência pode ter utilidades perversas. É quando a inteligência se confunde com perfídia.
Muito democratas, são os feitores da "democracia participativa". Daquela democracia que coincide com a razão que lhes assiste do alto da sua predestinada condição. Mesmo quando essa razão não é subscrita pela maioria. Há muitos ditadores que começaram assim. Por isso é que, entre dois males, continuo a preferir o mal menor. Com todas as críticas que por aqui já destilei contra a agónica democracia convencional, prefiro-a à "democracia participativa".
5 comentários:
Com todo o respeito pelas suas preferências, não posso deixar de lhe propor uma viagem crítica pelos exemplos de democracia participativa - aquelas em que os cidadãos exercem a sua soberania - e não só na América Latina. Qual a sua opinião sobre a Islândia, onde em referendo, foi rejeitado o pagamento das dívidas da banca e onde os seus responsáveis foram a tribunal.
Manuel Dias
Caro Manuel Dias:
Muito obrigado pelo seu comentário.
Não consigo estabelecer um sinónimo entre "democracia participativa" e exercício de soberania pelos cidadãos. Primeiro, porque as reuniões onde se promovem estas deliberações participadas obedecem a uma agenda e são influenciadas pelas intervenções feitas. Ora, como deve saber, muitas vezes essas intervenções são dominadas pelos gurus que se servem da sua autoridade intelectual para porem em prática as suas preferências ideológicas. Segundo, há uma questão de dimensão que fere a legitimidade destas assembleias participativas. Por mais concorridas que sejam, duvido que tenham uma representatividade significativa da população afetada pelas decisões. Já sei que me dirá, "pois, mas só não participa quem não quer participar". Ainda assim, as deliberações são tomadas por um número que, em regra, é muito escasso. E, por essa via, dificilmente pode ser considerado representativo do que quer que seja. Como tal, não vejo, sequer, onde este procedimento seja democrático. A não ser que alinhe com a fantasiosa "democracia real", esse conceito ainda por determinar e que, quando muito, tem equivalência àquilo que um punhado de gente gostaria que fosse a governação.
começou errado:
Há por aí muito intelectual que reclama a paternidade do refrescamento da democracia.
Paternalismo? Cara, começou deturpando ideal de uma organização... isso evidência sua posição antes de expressar seus motivos. Matou meu interesse por ler seu texto.
Ninguem quer estado paternalista. Nem os socialistas.
Quer escrever sem ganhar inimigos? Escreve direito, sem tentar fazer gozação ou ridicularizar os outros. isso é muito feio.
Admito que doa mexer em vacas sagradas (de quem as defende). Quanto ao mais, como ainda vale a liberdade de expressão (valor certamente pouco respeitado pelos que, dessas "organizações", desvalorizam a tolerância democrática), tanto eu tenho a liberdade de assim me expressar como o(a) anónimo(a) tem a sua. Que teve aqui acolhimento.
Não escrevo com o fito (ou o receio) de ganhar amigos ou inimigos. A divergência é muito bem vinda aqui.
outro texto:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7c4ede33a62160a1
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