Aposto que ninguém, no seu juízo (a menos que seja adversário figadal do regime capitalista), fica contente quando irrompe uma crise. Menos ainda com a magnitude e, sobretudo, a incerteza que a actual crise arrasta consigo. Pelo que leio, a crise tem o condão de por alguma gente bem-disposta. Os habituais profetas da desgraça, que povoam certas esquerdas, que agora estão com a sua moral de papo cheio e repetem por todas as esquinas: "eu não dizia?"
Fico satisfeito por esta gente estar tão enternecida com a crise que tem ido de surpresa em surpresa, deteriorando a confiança, fazendo mais negras as nuvens de incerteza que pairam sobre o amanhã. Querem fazer o funeral do capitalismo. Alguns, menos radicais, viraram as costas aos mesmos capitalistas com que amesendaram tanto tempo. Agora acusam-nos de ganância, de serem os responsáveis pelo estado calamitoso dos mercados financeiros, com o angustiante contágio à economia real. Estes, menos radicais e, contudo, mais hipócritas, asseguram que a saúde da economia só se restabelece com muita regulação. Também eles esfregam as mãos de contentamento: vêm uma nesga para subordinar os mercados ao controlo dos políticos, para pôr fim à rédea solta dos mercados.
Continuo a acreditar nas virtudes do capitalismo. Não há outro sistema económico que chegue aos calcanhares. Do que me não convenço é do capitalismo adulterado que a internacional socialista prega como destino inevitável para os dias que se seguem. Teremos que deixar passar o tempo para ver se a mão mágica do Estado conseguiu corrigir os desatinos da mão livre dos mercados. Há-de se fazer um balanço quando os efeitos começarem a ser notados. Não quero antecipar esse tempo. Apenas me coloco na posição de desconfiança metódica. De quem descrê dos predicados mágicos do Estado. Com uma agravante: os políticos contemporâneos são um hino à mediocridade.
No entanto, os sinais que levaram à crise obrigam-me a reconhecer que o capitalismo, tal como evoluiu até hoje, oferece de bandeja argumentos aos detractores. Não vou dar para o peditório organizado por alguns invejosos de serviço, destilando um despropositado despeito pelos gurus da alta finança e gestores pagos a peso de ouro; li descrições dos sinais exteriores de riqueza e do sumptuoso, mas flácido, estilo de vida dos gestores e gurus que se não são sinais de pura inveja, não sei o que sejam. Parece que os mercados financeiros atingiram tamanho ponto de sofisticação que nem os seus agentes conhecem os instrumentos que a criatividade inventou. Ou seja, não será ganância; é a armadilha da criatividade. É curioso que de algumas esquerdas certifiquem diagnósticos impiedosos que lacram a ganância da gente que gravita na alta finança. Só não percebo como são capazes de conclusão tão lapidar quando se gabam de serem inigualáveis optimistas antropológicos. Em que ficamos: os nefandos capitalistas são a excepção à bondade genética da raça humana?
Para os cânones que agora ficaram na moda – quem é louco ao ponto de continuar a defender o capitalismo como ele era quando a crise rebentou? –, ecoará um coro acusando-me de ser "fundamentalista do mercado". Não incomodam os rótulos pespegados por outros. Importa-me mais o que sei que sou. Entre os profetas da desgraça que andam em estado de nirvana com o colapso de bancos e mais bancos, e os curadores da imprescindível regulação para amestrar os selvagens mercados, continuo a ter mais confiança nos mercados. Funcionaram mal, é factual. Outro facto é o erro colossal de internalizar os prejuízos à custa de quem paga impostos (solução dos Estados Unidos, esse perigoso antro de "neo-liberalismo"; e mete-me espécie: como um antro do "neo-liberalismo" adopta uma solução que está nos antípodas do liberalismo; e como os tais profetas da desgraça se esqueceram de dar a mão à palmatória e não vieram a público emendar-se, admitindo que afinal aquilo é um antro, só que não de "neo-liberalismo"). Fica por saber se a iniciativa partiu dos políticos, ou se foram os capitalistas que, de calças rotas e mão estendida, suplicaram pela ajuda salvífica do quase divino Estado. A provar-se a segunda hipótese, sou eu que dou a mão à palmatória e começar a desconfiar dos capitalistas.
Há mercados que funcionam mal? Mas é óbvio. Um mercado, como o capitalismo, é uma construção humana. Falível, portanto. Negar isso, só com a mesma cegueira dos que estão de baioneta apontada ansiosos para disparar as balas da culpa aos capitalistas – por tomarem a árvore pela floresta. Dou este exemplo: soube há dias que há gente muito esperta, mas sem escrúpulos, que agencia trabalhadores romenos para as vindimas do Douro. Esta máfia execrável fica com um terço da jorna paga aos trabalhadores. Não me recordo dos detalhes dos números, mas com a quantidade de trabalhadores agenciados esta corja consegue reunir um pecúlio mensal que pouca gente aufere com trabalho honesto. Pergunto: o mal é do capitalismo, ou da falta de escrúpulos que alimenta uma deplorável ganância?
Mas, no fim de contas, estes não são tempos de glorificação dos fins e de desprezo dos meios?
(Em Frankfürt, em trânsito)
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