As lamentações não se consomem. Porém, são toda uma consumição. Encerram o transviado passo de algures. Como se houvesse uma encruzilhada que atraiçoou no caminho escolhido. No caminho sem retorno possível. Sobra a lamentação do passo desacertado. A lamentação, um choro sem lágrimas que clama pelo recuo do tempo. Para lá atrás volver e repetir o encontro com a encruzilhada. Saberia então por onde seria acertado o passo. Só que o irrepetível tempo é a coerciva espada a pender sobre a angústia das memórias. Nessa altura, o arrependimento solfeja a aridez do lugar ermo onde o corpo se abandona.
O refúgio é onde as lamentações se hão-de cansar do seu torpor. De tanto arquearem o corpo, de tanto o consumirem num lugar vazio que impede o olhar de alcançar o tempo vindouro, o arrependimento no seu fúnebre desenlace. Até lá, uma demorada peregrinação pela aridez cortante do lugar ermo a que o corpo se remeteu. Um vasto deserto de pedras e poeira, as colinas suaves numa cadência repetitiva. Sem gente viva, nem vegetação, nem sequer o rumor da água em tímidos regatos que viriam romper a aridez asfixiante.
De tão ermo, aquele lugar, como direi, parecia feito à medida do curso aflitivo que a carente lamentação exigia. Do fundo da memória gotejavam todos os traços pintados na paisagem estéril. No fundo, um lugar imaginado. Ou o pretexto para esconder os passos desacertados que inflamam improfícuo arrependimento. Das entranhas da terra parecia pulsar uma ilusória renovação, exactamente como se aqueles tempos que fermentam a lamentação nunca tivessem acontecido. Erro fatal. Só o esquecimento, o metódico esquecimento, varre as recordações indesejadas. Não a lamentação. Essa só consegue manter vivos os passos trocados, mantendo aberta, e purulenta, uma ferida que assim permanece dolorosa.
O imaginado ermal, na sua esterilidade, é um garrote que não deixa o corpo exangue no solo ensanguentado. As forças esvaem-se, porém, à medida que o sangue se esbarra contra a barragem feita garrote. O planalto amuralhado onde o corpo se refugia não é uma ilha perdida, uma ilha exclusiva ao arrependimento próprio. Está marcada algures no mapa. Acessível lugar, possam os outros esquadrinhar o tortuoso caminho até lá. Nessa altura, lamentação alguma conseguirá a remissão dos feitos errados. Os forasteiros, com a sua chegada, serão os feitores dos passos trocados que se queriam sepultados no lugar ermo. Serão os algozes que avivam as memórias não queridas.
São vultos que arrastam os pés por entre o caminho pedregoso, desfiando preces repetidas. Uma ladainha interminável. Um som audível em todos os recantos do lugar ermo. Navalha encravada nos ouvidos que acusa à exaustão a padecida alma que não consegue sobressaltar o seu próprio arrependimento. O lugar ermo na sua lânguida doença que se insinua em lamentação tão inútil. Desafortunadas preces que esbarram na repetição das memórias, nas circulares memórias sempre alimentadas pelo arrependimento que nada cura.
Às voltas, imerso nos seus pesadelos acordados, mergulhado nas dores da carne viva, descobre que o lugar ermo é o prolongamento dos passos desacertados de outrora. Em vez da pedra tumular, em vez de dobrar a página já amarelecida pela espessura do muito tempo volvido, o lugar ermo é a fuga de si mesmo que o devolve às dores atrozes. Não é refúgio. De tão ermo e sombrio, tão esmagadora a aridez que parece tolher a respiração, aquele lugar é uma tela por onde passam, e em câmara lenta, os episódios que menos queria recordar.
Por vezes, teme que o lugar ermo seja viagem só de ida. É quando se interroga se a peregrinação por tão esconso sítio o leva apenas pelo terreno onírico. E a perguntar: se o ensejo para deambular por imaginado lugar não é a sede de devolver a um passado que só se quer olvidado. Então, a impenitente conclusão: de que servem as lamentações?
Sem comentários:
Enviar um comentário