Não temos todos um sonho exótico, um projecto faraónico que sabemos ser quase impossível alcançar? Uma qualquer façanha pessoal, daquelas que até aos mais modestos faça garbo. Um lampejo de heroicidade pessoal. Qualquer que seja o género de feito, que as façanhas mudam de tonalidade consoante quem as idealize. Que um feito pode-o ser para uma pessoa e ser uma irrelevância para o vizinho do lado.
O meu projecto distante, muito distante em tudo, chegar ao alto do Everest. A montanha mais alta do planeta, que se eleva a quase nove mil metros de altitude. Um fascínio que vem desde criança, quando os olhos se colavam ao ecrã da televisão sempre que passava um documentário sobre temerárias expedições ao Everest. Naquela altura, a inocência da tenra idade semeava o deslumbramento pelo risco dos alpinistas que se aventuravam palas ladeiras geladas da montanha. Por vezes, o dramatismo encharcava os documentários quando expedições terminavam com a morte de alpinistas – às vezes apanhados numa inesperada e traiçoeira tempestade que os enregelava até à morte, outras vezes escorregando para precipícios inacessíveis, suas sepulturas finais. Havia, naquela heroicidade dos ousados alpinistas, uma inexplicável magia que era a razão de parte do fascínio de então.
A entrada pela idade dentro foi amolecendo os traços imberbes saídos da mais pura irracionalidade. Todavia, todo o encantamento pela alcantilada montanha manteve-se. Já não era o arrebatamento pela heroicidade gratuita, no fio ténue que separava os aventureiros da morte. Era um magnetismo que as formas da montanha deixavam em forma de rasto. Imagens do Everest ao longe continuavam a prender a atenção por demorados momentos. Cada notícia de um alpinista que ascendia ao cume da montanha era lida de uma ponta à outra. As expedições de João Garcia, passadas a texto, seguidas com atenção. E, apesar de ocasionalmente continuar a haver gente a perder a vida na montanha, persigo no encantamento quase religioso pelo Everest – e quase religioso porque estas palavras que aqui compulso são um difícil ensaio para passar um sentimento à forma de palavra.
Consta que a escalada do Everest se banalizou. Há tempos, a propósito da tragédia numa montanha que rivaliza em grau de dificuldade (o K2) que levou a vida de um punhado de experimentados montanhistas, a imprensa dedicou várias páginas à escalada das altas montanhas dos Himalaias. Soube que há turismo organizado na área, permitindo a interessados sem grande experiência tentar a escalada de alguns desses picos. Há quem lhe chame turismo vaidoso, para gente que depois regressa à terrinha para se gabar do feito alcançado. Esta forma vaidosa de associar turismo com a escalada do Everest é, dizem os puristas, uma adulteração do espírito com que os pioneiros encararam as traiçoeiras ladeiras até ao cimo da montanha. Sem as provações dos alpinistas profissionais, que agora até as tendas nos acampamentos-base possuem ar condicionado! Turismo pago a peso de ouro: os amadores aventureiros que ambicionem chegar ao tecto do mundo pagam trinta mil euros só por um lugar numa expedição.
Não vou contestar o rótulo depreciativo que os puristas colam à "comercialização" do Everest. Há muitas maneiras de encarar as coisas. Até uma escalada ao cume do Everest. Ao que sei, há vias de lá chegar que são menos difíceis, onde a exposição ao risco é menor. E as vias mais inacessíveis só ao alcance dos alpinistas profissionais, onde a probabilidade de acidentes é maior. Há quem julgue que só são válidas as chegadas ao cimo do Everest se não houver a ajuda de máscaras de oxigénio. As expedições organizadas para aspirantes a alpinistas e gente que depois ostenta a façanha obrigam à utilização de máscaras de oxigénio a partir de determinada cota, quando o ar se torna rarefeito. Que interessa discutir a pureza da escalada, ou se há ostentação nestes aventureiros endinheirados que procuram chegar lá cima? Nisto, como na compra de um potente e vistoso automóvel: há quem o faça por puro gosto, por ser apreciador; e quem o faça por pura ostentação.
É discussão irrelevante. Oxalá pudesse um dia fazer como um jovem economista do Banco de Itália que, no seu gabinete em Roma, tinha uma discreta fotografia tirada quando atingiu o cimo do Everest. Não o faria como espectáculo gratuito para os outros verem. Seria, e apenas, o simbólico orgulho de ter pisado a tecto do mundo ao cabo de uma (imagino) extenuante subida pelas ladeiras íngremes e geladas da montanha mágica. Uma mania então deixada para trás.
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