4.9.09

Repreensão dos instintos

Os passos, só o barulho dos passos no silêncio da madrugada. Nesse silêncio escutam-se apenas as dores interiores, as veias incendiadas pelo arrependimento das palavras ditas, de uma inteira maneira de ser. Caminham, os pés. Erram pelos caminhos que se tecem, aleatórios. É o profundo pensamento que os conduz, como se fossem os dedos meticulosos metidos num tear a dedilhar os fios que se tecem num caótico tapete. E vogam, os pensamentos. Desalinhados, sobrepondo-se numa desorganizada sucessão.


É tremenda a confusão que troveja no pensamento. Por vezes o corpo estremece, electrizado pelo relampejante acosso da consciência. A consciência; a dolorosa chamada à terra, ou uma culpa enfim domada. Pois há na consciência que aterra uma paradoxal sensação: ora a mordomia de uma aterragem suave que acalma o fervente turbilhão que inflamou os instintos; ora a negação dos instintos, que renega a espontânea forma de ser, um borrão sobre o que se possa pensar ser a essência do ser. Atado a esta encruzilhada, oxalá o pensamento não mergulhasse na sua profundidade. Lá, onde se torna insuportavelmente doloroso.


Ao falarem as águas lânguidas da consciência, soltam-se as amarras da lucidez. Ou do que se julga ser a lucidez. Impõe-se a repreensão dos instintos que foram caução de gestos improváveis, ou de palavras que deixaram em alguém um travo amargo, ou da estranha sensação de desprazimento com o ser que se é. Da repreensão dos instintos, mas não da repressão dos instintos. Mal das águas remansosas da consciência se fossem sempre a compressão dos instintos. É que os instintos desdobram-se na sua esquizofrenia. O mesmo instinto pode infligir dor e pode ser a inesperada porta que se entreabre, a súbita saída encontrada no nada para um labirinto demencial.


Tudo isto se faz em silêncio. O turbilhão do indomável pensamento exige o silêncio do mergulho nas águas profundas onde mora o patrono da lucidez. É ele que vai temperar a fervura das águas que se revolvem numa correnteza bravia. Do silêncio, dir-se-ia que é o medicamento que acalma as consumições fermentadas no leite coalhado que é o arrependimento.


Não custa destapar as algemas do arrependimento. O que custa é ver o que está a montante e a jusante do arrependimento. A montante, a ferocidade dos instintos que se soltam na sua selvática, porventura genuína cadência. Deixando um rasto de equívocos, palavras que não deviam ter sido ditas, uma inteira forma de ser que parece profundamente errada. Depois o tempo acerta contas com o arrependimento, quando a aflitiva consciência faz as vezes do paredão da barragem que retém as tempestuosas águas que ali se espraiam num vagaroso leito onde as águas enfim repousam. A jusante, para além do paredão da barragem, depois do abrupto lancil onde se despejam os excessos dos imoderados instintos, estremece uma culpa.


É neste fluxo de opostos que macera a existência. Retalhada entre o algo e o seu contrário. Num constante deambular entre o ser o seu inverso, quando no silêncio da lucidez que aterra grita a negação do que fora dito ou feito, às vezes a negação do ser que se é. Não sei o que mais custa: se admitir a negação de tudo isto, ou as dores que admiti-lo causa. O corpo entrega-se a esta mortificação. Nas palavras de Fernando Pessoa, "feliz do homem que pode pensar profundamente, mas sentir tão profundamente é uma maldição. Como descrevê-la? Horror sobre horror."


Das alturas onde nasce o rio despenham-se as águas na sua ferocidade. Tropeçam nos penedos que se atravancam no caminho. Essas águas fulminam-se no cimento dos instintos, a pureza do ser nem que dessa pureza sobrem todas as angústias mais tarde domadas no silêncio da madrugada. E também não sei o que sou: se as águas transparentes que tragam o caminho pedregoso, todos os turbilhões que se sucedem com alguma selvática intensidade, ou o lado a jusante da barragem quando a repreensão dos instintos desastrados destapou o alçapão do arrependimento.

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