Garantes: acreditamos sempre em algo. Mesmo quando queremos provocar os outros com uma tempestade agnóstica. Pois até o agnosticismo é crença. Em nada; mas crença em algo que é um nada qualquer. Disso não posso fugir – dizes, em pose desafiante. Logo eu – insistes – que arrebato todo o orgulho quando garanto nada acreditar.
A lição contínua que escuto: as pessoas são entidades que mergulham na imensidão da sua pequenez quando mostram uma crença. Ou num deus (o mais óbvio), ou fora da metafísica. Naquelas coisas que – prossegues – com desdém alimentam a minha sátira. Acusas: que o deserto em que habito é uma ofensa para os que querem acreditar num algo qualquer. Ofendo-os quando não me fico pela exibição de agnosticismo com que julgo maçar os acreditadores, ao embelezar a sátira com palavras corrosivas.
Confrontado com o libelo acusatório, vacilo. Uma hesitação que me consome, nas dúvidas que pesam como um jogo de sombras negras que insinuam aterradores fantasmas à espera de rasgar a coerência que de mim reclamo. Como se fossem carrascos só à espera de uma distracção, da cabeça a arquear-se no tronco derrotada por um sono fatal. Nunca julguei – contrapões – que do lado de fora me vissem diferente daquele que interiorizei ser; e como é de fora que as imagens se desnudam na sua nitidez, cultivo um eu desfocado – é a tua instigação, em jeito de provocação.
Não sei se me dás a provar do veneno que costumo cuspir quando dizes que sirvo as palavras corrosivas em bandeja enferrujada. Não me diminui se vacilar diante do que julgara serem certezas (quando há um vestígio de certeza a espreitar pela janela entreaberta). É a minha vez: serve-te à vontade do gourmet da retórica, desfaz-se em elaborados raciocínios que conduzem ao lugar onde queres que eu chegue, um lugar onde seria a negação do eu que em mim projectei. Insiste por aí, na irrelevância das ilações que julgas serem em mim um devastador abalo telúrico. As coisas que escolheram povoar o pensamento são como são. Concordo: as relativas, muito relativas verdades, são o sumo da negação do que nos aparece como evidência. Ou então uma dolorosa lição que se sobrepõe a todas as outras: as verdades não passam de um disfarce que nos entretém enquanto o mundo inteiro passa por baixo e por cima da nossa existência.
Se fosse pela heurística que escolheste, se alinhasse nessa urgência de derreter a espessura do eu que julguei ser, não custaria a admitir que em nada acreditar é uma crença. Não religiosa, por certo. Mas caoticamente metódica, a sistemática busca da rejeição de tudo o que fosse dado como certo. Podes dizê-lo: uma absurda negação de tudo o que ganha espessura; como se essa espessura fosse o esgoto por onde se esvai a simetria das coisas possuídas pela sua nitidez, já então apenas vestígios desprovidos de utilidade. Aceito o teu perplexo diagnóstico: um permanente estado de insatisfação, a angústia perene que, de tão poderosa, já nem em dor se consome.
Teimas. Não desistes de me convencer a entender as coisas do mundo por outro ângulo. Pois há-de haver uma crença, uma qualquer, metafísica ou não, uma que seja muito ou nada esotérica; mas há-de haver uma coisa em que acredite para além da acidez de um nada que me deixa exangue. Se quase todos somos acreditadores num algo que seja, já me foi dado a perceber o desengano em que macero na teimosia dos sentidos maltratados mercê da metódica anemia em que habito?
Sabes? Sossega-me o ensimesmar das mágoas que de mim sou feitor. Replico: eu tento, juro que tento. Não são poucas as vezes que em mim levita o cansaço da negação de tudo. E arremeto pelas veredas diferentes que podem alcançar outras respostas. Nelas só vejo um nevoeiro denso que me leva a tactear, às cegas, as pedras pontiagudas que já deixaram os pés sangrados. Da experiência não trago ânimo. Só um espasmo demorado, como se fosse um lancil dobrado e a seguir o corpo caísse no imenso vazio.
Lá ao fundo do precipício, achei-me no lugar de onde saíra. A contemplar, com uma inveja sadia mas perturbante, optimista procissão de acreditadores de variada espécie. Na senda da candeia, nem que seja uma imaginária candeia, que perseguem.
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