21.9.09

Lembras-te do futuro?



Que nos precatemos de não usar a palavra "tempo". Pois todas as coisas se desfazem nas abóbadas onde o passado se deita. Olhamos em frente e apetece-nos dar a provar o futuro num cálice dourado, sumptuoso. É quando, a destempo, temos saudades do futuro.

Uma sondagem dos dias vindouros, dos que estão à dobra da esquina e daqueles cuja espessura está aprazada para mais tarde – é o que nos honra. Depressa nos cansamos dos dias correntes. Não faz sentido vaguear pelas margens das memórias, como se nessa deambulação algo de exterior a nós se impusesse sobre o que somos quando o somos – que é o agora à espera de todos os amanhãs que queremos ansiosamente degustar.

Apetecível é o futuro. Esse mar imenso onde navegam as esperanças que fermentam o adocicado da existência. Ou apenas uma doce ilusão de um amanhã que jamais terá as tonalidades espelhadas em todos os sonhos. Mas seja: é de hoje em diante que se joga a sobriedade, alguma finitude. De hoje em diante que se acolhem os segredos que um dia qualquer tratará de revelar. É o que sabemos. Que haverá alguns porvires reconfortantes, outros embebidos no anonimato dos dias todos iguais, uns ainda excruciantes. É desses porvires que nos queremos lembrar.

Não me julgues equivocado. Sei da impossibilidade física que é desvendar amanhãs. Quando interrogo se nos lembramos do futuro, quero recordar que as recordações nos conduzem por um, porventura, auspicioso trilho que termina num precipício invisível até a lá se chegar. Esse precipício tem nome: chama-se "hoje" e é doloroso quando insistimos em andar de mão dada com as memórias que são uma imagem esgotada de um passado irrepetível. É por isso que faz sentido perguntar se te lembras do amanhã? Para que te não esqueças que temos uma dívida com os dias que hão-de vir. Seremos caricaturas de nós mesmos se teimarmos na nostalgia. Desse modo, desperdiçamos o hoje que é a parte tangível da existência. Ao derrotar os dias presentes, na indigência do futuro, somos a ausência de nós mesmos. A anulação da nossa existência. Indignos dos porvires que esperam por nós.

Por isso te explico esta obstinação com o passado, uma matéria inerte que extirpa o oxigénio da existência. Não digo que reneguemos o percurso pelos dias que pertencem à história. Só não quero ficar algemado aos outroras que já foram meu império – por mais perfumados que sejam, por mais vivificantes as memórias que se trazem de lá. Prefiro ter saudades do amanhã, esse majestoso gigante desconhecido, a reserva natural de todas as incógnitas. É pela mão das incógnitas que me quero deixar guiar nos amanhãs que espero sorver, com sofreguidão ou apenas com a quietude de quem já não se exaspera por viver mais depressa que o timbre do grande relógio universal.

Dizes-me que os porvires que nos esperam são terrivelmente ameaçadores, debruados com uma escuridão que corta a respiração, que sentes corvos azoando os amanhãs. Dizes-me que passo por cima dos dias presentes com a urgência de quem quer pisar os campos que desvelam os amanhãs. Em o fazendo, que também me demito do eu que sou hoje. Pode ser que sim. Pode ser que atropele a cadência do grande relógio universal pelo febril sintoma dos amanhãs prometidos. Antes virar a cara aos dias emoldurados na rigidez do passado que não volta a acontecer, do que passar ao de leve pelos dias correntes com uma consistência que os sentidos conseguem apurar. Ao menos tenho prometido um futuro radioso, sem estar acorrentado ao peso das memórias irrepetíveis, um peso que arqueia a existência a ponto de a deixar inerme.

Os muitos hoje que vivemos têm um traço comum com os ainda mais ontem que já experimentámos: a sua grande espessura é a da irrelevância dos dias anónimos, dos dias que não deixam vestígios no grande livro da vida. Se o que se conhece deixa este travo de inutilidade, sobram então as saudades do futuro. Só as teremos se nos lembrarmos que é o futuro que nos tem nas mãos.

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