Vamos falar de utopias. E da mania de nos metermos na vida dos outros. Tanto acontece com as alcoviteiras (as reformadas que se entretêm a vasculhar na vida dos vizinhos; ou os colegas de trabalho que metem o nariz onde não são chamados) como ao mais alto nível, no dia-a-dia da governação. Tanto nos metemos na vida dos outros através dos palpites sobre aspectos da vida alheia que não nos dizem respeito, como aceitamos que se metam na nossa vida através da diarreia legislativa que toca tudo e mais alguma coisa na vida que apenas a nós devia dizer respeito.
Ser libertário é um compromisso apaixonado com a liberdade pessoal. E se tanto amamos a liberdade individual só a honramos se respeitarmos a liberdade individual de todos. Só que somos indulgentes com a suposta bondade das políticas públicas, quando as decisões encerram supostas vantagens que, argumenta-se, facilitam a nossa vida. E, quantas vezes, uma medida vantajosa não é a contrapartida de dezenas e dezenas de decisões que apertam o cerco ao livre arbítrio e nos tutelam como se estivéssemos carenciados de uma paternal bússola? Aceitamos. Julgamos que deve existir uma mão visível, e de preferência firme, que nos ponha no "bom caminho". Quando o aceitamos, demitimo-nos da individualidade que somos.
O libertário não acredita na ficção da sociedade. É uma ficção porque se trata de uma abstracção. E o que é a sociedade? Somos todos nós, o cimento da comunidade – dirá o coro dos bem pensantes. Ao vingar o imperativo das necessidades da sociedade, sobretudo quando os interesses individuais cedem perante o "bem comum", não acabam por vingar certos interesses individuais? Que assim se escondem detrás da máscara dos interesses colectivos – e daí a sociedade não passar de uma ficção, uma patranha bem encenada para levar os incautos no engodo.
O maior bem que podiam oferecer ao libertário era derrubar todas as algemas mentais que comprometem cada indivíduo no proclamado interesse da sociedade, obrigando-o a sacrificar legítimos interesses pessoais. Depois, os meirinhos desta ladainha (a da superioridade do social sobre o indivíduo) treslêem parte do catecismo liberal para ensinarem que a liberdade de cada um termina quando ela invade a liberdade dos outros. Este é o prontuário oportunista dos muitos engenheiros sociais que oferecem as suas abundantes qualidades intelectuais para tornar este mundo um sítio melhor para se viver. O que nunca revelam é a volátil fronteira entre a minha liberdade e a liberdade do outro. Em vez de deixar aos envolvidos a disputa da fronteira, confiando na capacidade de ambos para delimitar os terrenos das respectivas liberdades, são os engenheiros sociais que as fixam. Fazem-no de maneira unilateral e arbitrária. Atropelando a liberdade dos outros.
É por isso que o libertário desconfia da autoridade de todos os dias e dos grandes planos que nos orientam a prazo. O libertário não consegue agradecer, muito menos compreender, a generosidade e a presciência dos que dizem ter contraído matrimónio com a causa do serviço público. Pois essa é uma utopia – uma utopia de sentido contrário à utopia libertária. Por mais que os servidores da causa pública apareçam comprometidos com o serviço público, como nos convencem que esse interesse não seja individual? E, portanto, não é possível que não contagiem o exortado "interesse público" com o seu interesse individual.
Podem-me aconselhar a pôr os pés no chão, ou a abrir os olhos, dizendo-me: mas isto sempre foi assim, com diferentes actores e na alternância de interesses. Seja. Alguém me censura se aqui vier confessar o cansaço pelo estado de coisas que é a normalidade vigente? Dando de barato que as coisas são como são, é crime confessar o desejo que uma utopia se convertesse em realidade? A natureza humana é o imponderável que impede que a utopia o deixe de ser. Tornámo-nos viciados na dependência recíproca. Achamos que podemos opinar sobre muita coisa que apenas diz respeito aos outros. Enquanto formos seres tutelares da vida alheia, não há utopia libertária que tenha valimento. Pois não somos merecedores da nossa liberdade individual.
Há um sentido no devir libertário: uma rejeição total ao conservadorismo maior que é aceitar a autoridade a que devemos respeito. Os engenheiros sociais, os feitores da diarreia legislativa que pretende resolver todos os problemas que nos aparecem pela frente, são os maiores conservadores que temos.
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