O desordenado amontoado de pedras exposto ao vento agreste. As silvas que avançam sem freio, misturando-se com as ruínas lassas. Uma amálgama de pedras despojadas e ferros retorcidos e enferrujados. Como se os ferros fundissem com as pedras despedaçadas, num quadro homogéneo. Outrora, aquele lugar fora um hino de prosperidade. Agora sopra uma melodia suave, os violinos confundindo-se com o silvo do vento que arremete no sopé da serra.
Há naquele lugar um paradoxal efeito – uma paisagem arrepiante, de uma feiura atroz ao início, que todavia esconde uma beleza convocada pela demorada atenção. As ruínas acasteladas, ou o postal avivando a decadência do lugar. Diz quem lá passa com frequência que os elementos da natureza deixam as suas marcas. As pedras tombam, acomodam-se numa caótica ordenação. Arrastam outras pedras que resistiam à monotonia do tempo parado. Só que o tempo não está parado. Investe contra as ruínas, que com o tempo em mutação se tornam ruínas das ruínas que já eram. E, todavia, nota-se uma inusitada beleza embebida naquela decadência. As imagens a povoarem a imaginação, que se tecia nos seus labirínticos corredores: se os olhos se detinham diante das ruínas, é porque, antes de o serem, naquele sítio fervilhou gente e uma intensa actividade.
Era só os olhos fecharem-se. Para sentir o bulício daquele lugar ermo – até nessa altura, ermo. A azáfama dos trabalhadores, o estridente barulho da maquinaria em plena jornada industrial. Os camiões que enchiam de poeira os caminhos pedregosos que subiam pela serra até avistarem o planalto dominado pelo que agora são apenas umas ruínas – apenas. Ao abrir dos olhos, as imagens que tinham passado no imaginário como se fossem o sonho de um tempo ausente, regressariam ao decadente, desértico lugar que ali se tornara. Um desfiladeiro das memórias resgatadas do nada. Ou um convite para mergulhar em livros, nos livros cheios de fotografias que trouxessem um fragmento da industrial imponência que aquele lugar fora.
Os diferentes rostos que a modernidade amealha trouxeram a decadência ao lugar. Uma curva descendente, no notório declínio que ditou o encerramento das instalações. Primeiro, o abandono – das gentes, por míngua de procura para o que ali se fabricava. A debandada de quem ali laborava sinalizava o desinteresse das gentes pela coisa mercada. Depois do abandono, o deserto que tomou conta da convivência das pedras desabitadas, já deixadas, inertes, à sua perfeita inutilidade.
Os olhos demoravam-se na contemplação das ruínas quando uma interrogação se insinuou: o abandono não trouxe a destruição do lugar? Não ficariam vestígios de uma decadência, uma insalubre imagem da estatura de outrora que os tempos modernos deixaram de patrocinar. Não haveria lugar à nostalgia incendiada pela simples existência do lugar encaminhado para as ruínas de si mesmo. Oxalá tivesse havido coragem, ou apenas rasgo, para pontuar o abandono com a devastação das edificações que deixariam de ser um desordenado amontoado de pedras fundidas com os ferros retorcidos e ferrugentos. Durante dias, só teria permanecido uma teimosa nuvem de pó a emoldurar os restos das pedras à espera da lenta derrocada. Não houve mister para encontrar tamanha coragem, ou apenas rasgo. Ninguém ousou mandar máquinas para que aquele lugar ficasse em nada.
As ruínas são o museu singular, espontâneo, da prosperidade de outrora. Perdurava a grandeza das ruínas. Não das pedras sem sentido que escoravam as paredes que se iam desnudando com a sucessão de invernias sempre severas. Era como se as pedras tombassem e com elas se esvaísse mais um vestígio da opulência que houvera naquele lugar. Enquanto durassem as ruínas, sobrava uma memória. Mesmo memória para quem, por acidente da juventude, nunca conhecera aquele lugar na sua vibrante laboração.
As ruínas são uma coreografia encenada sob a batuta das clepsidras que nunca param a função. Uma representação, apenas. O que aquele lugar é não são as ruínas em que ficou. Permanece vivo pelo fulgor bebido nas memórias – as visuais, de quem as viveu; e as fotográficas, de quem as legou para a posteridade. As ruínas não são a decadência convencionada. São apenas um museu, porventura em morte lenta, das coisas feitas quando ali havia um tempo próprio.
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