17.9.09

As irritantes virtudes

Às vezes damos de caras com outros que são o espelho de nós por neles as nossas virtudes se retratarem. Vê-se, então, como essas virtudes, que em nós julgamos serem virtudes, são tão irritantes. Serve, ao menos, para que se perceba que os juízos que fazemos são de uma relatividade brutal: o que hoje enche de orgulho pode amanhã ser a fonte de desprazer.

Há nisto algo de esquizofrénico. Ou uma inexplicável inveja, pois quando são os outros que levam ao extremo determinados traços de personalidade que temos como certos na nossa forma de ser, deixamos de os ter entre o património do elogiável. É, ao mesmo tempo, expressão de um saudável descontentamento com o que somos. Quem gosta de se enquistar numa imóvel forma de ser? Pode acontecer que nos cansemos de ser o que somos com uma certa periodicidade – ou que, ao menos, nos cansemos de certos atributos que são atirados para o quarto escuro dos predicados que o deixaram de ser. Em tudo isto, a sensação de que perseguimos a transiente espessura que nos usurpa. 

Dois exemplos pessoais: pontualidade e organização. Digo que um dos males indígenas – há quem assegure tratar-se de idiossincrasia – é o sistemático atraso. Marca-se uma hora para um encontro, para uma reunião, o que quer que seja. Nunca começa à hora. Contagiamo-nos uns aos outros porque sabemos que um de nós chegará atrasado. Por isso relaxamos enquanto vemos com despreocupação os ponteiros do relógio avançar para além da hora marcada. Como alguém vai chegar atrasado, não vem mal ao mundo se lá chegarmos atrasados também. Como não seremos os últimos, não se considera a falta de pontualidade um atraso. O odioso – e mesmo assim sempre perdoável, com a generosa indulgência que temos – sobra para aquele que chegar mais atrasado.

Exijo de mim pontualidade. Britânica. Se o relógio que trago se atrasa um minuto entro em sobressalto se não o acerto à primeira oportunidade. Mas, por estranho que pareça, aborrecem-me mais aqueles que são ainda mais pontuais que eu. Mais do que aqueles que mandam a pontualidade às malvas. Isto é um paradoxo. Chegar antes do tempo não é como chegar atrasado: só um atraso é irremediável, porque o tempo combinado passou a fasquia do tempo já inamovível. A pontualidade extemporânea – se assim posso chamar à mania de chegar antes da hora – é uma vaidade inconsequente. É de gente que gosta de ostentar o zelo com o relógio, gente que adora esmagar nos demais que levam tão a sério a pontualidade que foram os primeiros a chegar ao compromisso agendado. 

Segundo exemplo: ser metódico. A interior organização de cada um compete a cada um. Não tenho nada contra a falta de método em que os outros vivem mergulhados. Há quem só consiga viver no meio de uma total desarrumação mental. Às vezes gostava de ser assim. Nem sempre é fácil conviver com o espartilho de se ser metódico, pois sobram algumas algemas que limitam a pessoal liberdade. É como se a organização mental que nos impomos actuasse como uma tirania interior que condiciona a liberdade que a nós mesmos vedamos. Todavia, ser metódico é imprescindível para ter um prumo que dê equilíbrio à existência. O mais difícil é atingir o equilíbrio entre o método e não ficar aprisionado nas entranhas do método a tal ponto que já só somos seres metódicos e nada mais. É quando a muita organização interior desagua em nada de palpável. Nessa altura, já só somos forma sem sermos substância.

Também me irritam aquelas pessoas muito organizadinhas, que não dão um passo sem o estudarem meticulosamente. Às vezes, isso confunde-se com um calculismo que semeia desconfiança entre quem rodeia os calculistas. Essa metódica forma de ser levanta a suspeita de que actos e palavras trazem água no bico. Quando deparo com metódicos fundamentalistas, tenho uma súbita vontade de renegar a pessoal organização que julgava ser um distinto atributo. É quando me apetece entrar no aviltante lugar onde nada é pensado e tudo acontece ao acaso, pela mão dos espontâneos actos e palavras. 

Será a negação de pessoais atributos quando os vemos reflectidos nos outros uma crise de identidade, uma negação do que somos quando vemos esses atributos espelhados nos outros?

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