24.9.09

A igreja católica dos muitos paradoxos (ou de como a vida terrena é inútil)



Se morrer não custa – pois num funeral o sacerdote que preside às exéquias consola a família, assegurando que o falecido entrou "no reino de deus" e agora é que está feliz – para que andamos aqui a viver?

Nisto da fé, ou se acredita ou não. Não me parece que seja possível encontrar meio-termo. Os crentes do catecismo católico vivem na esperança de encontrarem o paraíso depois de se despedirem da vida terrena. Teoriza-se: a vida terrena, a única vida que os sentidos conhecem, aquela de que temos provas indubitáveis, é uma "passagem". Um tirocínio para a existência que contará. A vida noutra dimensão, já sem a prisão do corpo e dos sentidos que tanto nos conferem prazeres como tristezas desatadas. A existência extra-sensorial, toda embebida numa espiritualidade de que não há prova tangível. A morte não é amarga. É só escutar a oratória do pároco quando um féretro se entrega à despedida abençoada pelo "ministro de deus": que se enxuguem as lágrimas dos familiares e amigos, que aquele que ali se homenageia está melhor do que todos nós que ainda estamos presos à vida terrena.

Se assim é, porque somos teimosos ao ponto de verter lágrimas quando um ente querido nos deixa? Porque insistimos em tornar a despedida um momento carregado de tristeza? Há aqui uma contradição insanável: em vez de toda aquela gravidade e recolhimento dos funerais, devia ser como em certas religiões que reúnem os familiares e amigos do desaparecido e fazem uma festa, com direito a lauto banquete e tudo. À memória vêm certos filmes rodados nos Estados Unidos, retratando o costume dominante: ninguém derrama lágrimas, as pessoas riem-se com as boas recordações de quem homenageiam, o luto não é tingido de negro.

O catolicismo aprendeu muita psicologia e pretende contagiar as pessoas entristecidas pela morte de alguém que lhes é querido com essa psicologia anestesiante. Quando o sacerdote confirma que o óbito é um acto de bondade do infinitamente bondoso deus, pois a pessoa que morre entrega-se nos braços da prometida dimensão celestial onde terminam as amarguras da vida terrena, parece retórica de vendedor de apartamentos a tentar convencer o incauto a comprar uma casa que aparenta maravilhas mas depressa se descobre ser um logro. A mágoa dos familiares e amigos deve ser apaziguada pela consolação das palavras analgésicas do sacerdote. Daí a acreditar-se na ladainha que se escuta numa cerimónia fúnebre, é uma questão de fé: ou se tem e as palavras de consolação reconfortam, ou se não tem e aquelas palavras incomodam.

Se morrer é a festa maior da vida, então qual é a utilidade dos anos que a vida nos consome? Parece tempo perdido, viver a vida de que temos prova. Será isto a confissão da inutilidade da vida? Por que motivo a doutrina católica é tão ríspida com o suicídio, ao ponto de recusar campa benzida aos suicidas? Assim como assim, o suicídio podia ser encarado com a antecipação da existência gloriosa que nos é prometida quando o deus bondoso decide levar-nos para junto de si.

O ateu continua atormentado com o fenómeno da morte. É um ponto final, sem parágrafo que se siga ao termo da frase – e esse é um ponto final angustiante. Por isso é que, como ateu resoluto, tenho um pavor indescritível da morte. Ou talvez não, depende do estado de espírito. É que todos temos daqueles dias em que nos olhamos no espelho e temos orgulho do que vemos. Nesses dias, a morte amedronta. Pensamos: que desperdício para o mundo se alguém como eu disser adeus à existência. Mas há outros dias em que não gostamos de quem somos. Nesses dias, a morte deixa de ser uma consumição.

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