22.9.09

A grotesca desgraça e nós: espectadores como se fôssemos abutres



Metem-me espécie. Os programas de televisão que oferecem, tão generosos, pungentes episódios da vida dos outros. Convidam-nos à comiseração – ou são como uma janela aberta por onde entra algum ar fresco, pois afinal a televisão ensina que há vidas mais desgraçadas (das vidas dos que se entregam ao fatalismo, consequente ou não). Será forte dizer que me enojam esses programas; mas é nojo, e uso a palavra no seu sentido literal, o que sinto. Nojo: por quem se entrega à exploração destes casos, por haver quem se delicie no compungimento que parece lacerar mais quem exibe a pena do quem passou pelas dores da desgraça, nojo até dos infaustos que abrem as suas misérias ao espiolhar dos outros.

Tudo isto me leva a perguntar por que somos especialistas na arte de esquadrinhar a miséria dos outros. Alguém percebe que estamos despudoradamente a desnudar essas pessoas, a liquidar a sua intimidade, a ofender a sua dor? Alguém percebe que lhes agravamos o sofrimento, como se a partilha da dor por uma multidão de telespectadores amplificasse o seu próprio sofrimento?

O aproveitamento das adversidades espalhadas pela vida das pessoas faz dos adoradores do género lamentáveis voyeurs. Onde tudo começa, quem alimenta o género – se o feitio da populaça que sempre gostou de ver sangue a jorrar, se as televisões que fidelizam audiências com estes episódios que dilaceram a alma de gente sensível e cativam a atenção de quem sente um indizível prazer interior ao testemunhar a desgraça que bate à porta dos outros –, isso acaba por não interessar. Só que toda a gente, desde quem aceita expor as pessoais desgraças, passando por quem lhes confere o palco e terminando no público ávido da grotesca delícia com os males alheios, toda a gente se merece na perfeita indignidade de si mesma.

E se não são as televisões que trepam umas às outras para terem mais um ponto percentual de audiência, são os jornais – até os que recusam, com sentido, o rótulo de sensacionalistas – a escorregar para a atroz partilha das misérias dos outros. Há dias, quando morreram sete raparigas num pavoroso acidente rodoviário, o Jornal de Notícias tinha na capa uma fotografia tirada pouco depois do acidente. Ainda com os corpos trucidados à mostra. Não percebi – nem quis indagar – se a fotografia foi tirada por um repórter do jornal ou por um "popular" que a vendeu ao jornal. Num caso como noutro, o atentado à ética jornalística já tinha sido perpetrado. Porventura nem é isso que interessa. Às malvas a ética, mais ainda se for a sectorial e muito escorregadia ética dos jornalistas. Por cima de tudo isso, a dignidade que mereciam as pessoas acabadas de perecer e os seus familiares. Terá alguma criatura com responsabilidades editoriais no jornal pensado no que teria sentido se naquela fotografia estivesse um corpo despedaçado de um seu familiar?

Não sei se é falta de critério. Rejeito a ladainha dos valores que se ausentaram – e o que é isso dos "valores"? Só consigo explicar a náusea que me invade quando este bastardo voyeurismo esvoaça com as suas enormes asas espalhafatosas, dando uns beliscões em quem passa para que não se esqueça de mergulhar no vórtice da desgraça que consome os outros. E não me venham dizer que tudo isto é um singelo convite à solidariedade, como quem sugere que a exposição dos tremendos males que destroçam as suas vítimas é um convite ao lado generoso de quem os testemunha. O que ali há é uma mórbida curiosidade, uma sede insaciável de se enodoar no lodaçal para onde os miseráveis foram empurrados.

Dizem-me que a imprensa, na sua "ânsia democrática", se limita a satisfazer os gostos das maiorias. Eis o que está mal: a duvidosa estética das maiorias e a covardia da imprensa que se esconde em pretextos mal amanhados. Desta náusea sobra o travo amargo da urgência do exílio; exige-o a sanidade mental.

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