3.9.09

A paternalista autoridade exibe-se e o cidadão aplaude


Na praia, corria a notícia: ia um pandemónio no cais onde se apanham as barcaças que sulcam a ria até ao areal. Fila de gente muito para além do habitual. A polícia marítima marcara para aquele dia uma "acção de fiscalização". Os agentes da autoridade estavam no cais a contar as pessoas que embarcavam. Impediam a sobrelotação das barcaças. Ao meu lado, um cidadão – o protótipo do "cidadão consciente" – aplaudia à distância a operação policial. Assertivo, atirou para o resto da família: "pois eu cá acho muito bem; é para o bem de todos nós".


Subiu-me pela pele a alergia do costume quando sinto exibições gratuitas de autoridade. Quando a autoridade passa das marcas e escorrega para o autoritarismo. Fico mais inquieto quando vejo ao meu lado "cidadãos exemplares" que ovacionam o paternalista braço das autoridades que se esmaga sobre todos nós, como se fosse um beijo de Cassandra. Há gente que não cresceu, mostrando os laços avivados de uma espécie de eterna adolescência: querem a carta de alforria, mas quando sentem que a maré vem contra convocam o auxílio paternalista de uma suprema autoridade. Neste caso, as autoridades existem – pensam os adoradores das autoridades de pulso firme – para prevenir grandes males. E para os reprimir, caso seja necessário.


Ao fim da manhã, quando o sol já ameaçava a saúde da epiderme, regressámos a terra. Do outro lado da ria, confirmei o bulício. A fila que se alongava pelo cais flutuante, subindo a escadaria até à rua, dobrando a esquina pela esquerda. As pessoas impacientes, sussurrando impropérios aos agentes pela demora a que não estavam acostumados. Entre o bordo do cais e as barcaças que nele atracavam, agentes da polícia marítima com cara de poucos amigos, ar tenso e, sem exagero, marcial. Faziam a contagem de quem saía das embarcações. E eram eles que substituíam os comandantes das embarcações na contagem dos passageiros que iam a bordo na curta viagem até à praia. Com gestos militares, voz de comando a que a turba tinha que obedecer sem esboçar a mínima objecção, tal era o ar ameaçador dos agentes em gratuita exibição de autoridade.


Se ali estivesse o "exemplar cidadão" que fora ocasional vizinho na praia, adivinho-o a destilar astutas lições de moral sobre a demora necessária suportada pelos veraneantes que se faziam à praia a horas impróprias (no entender de dermatologistas). Com aquele ar de nazi travestido de socialista, com o dedo erguido a defender as diligentes autoridades que só querem o nosso bem. E que, por tanto quererem o bem comum, ostentam autoridade para a prevenção de males maiores. Ensinaria aos relapsos, o "exemplar cidadão", que a imprevidência geral exige o punho de ferro das autoridades. Os veraneantes em demorada espera, no pino do sol que se fazia tórrido, aconselhados pelo "exemplar cidadão" a não serem comodistas. Um pouco de inteligência; como disse o "exemplar cidadão" na praia, de dedo erguido para sublinhar a assertividade das suas verdades, "é para depois as pessoas não se queixarem". Depois, supõe-se, é quando o mal tivesse acontecido.


Se ali estivesse o "exemplar cidadão" a dizer tudo isto, eu dir-lhe-ia que confio mais nos comandantes das pequenas embarcações do que nos zelosos agentes que passeavam a autoridade da farda (ou que passeavam, de farda, a autoridade – não cheguei a perceber qual das duas era). Os males acontecem, estejam as paternalistas autoridades de olhos bem abertos, ou estejam elas com a atenção desviada para os errados locais. Prefiro confiar na aleatoriedade das coisas do que na abusiva presença das autoridades convencidas que saldam as hipóteses de acidentes com uma fugaz, mas intrusiva, "acção de fiscalização".


Dispenso estas autoridades que se querem insinuar no seu paternalismo inevitável. Um paternalismo sufocante, como se fosse uma jaula que nos limita os passos. Mas o mal é meu, que confio demais no valor da liberdade. E não sei o que é pior: se ver os untuosos agentes da autoridade a cavalgarem num autoritarismo ainda mais perigoso por ter a caução da democracia; se "exemplares cidadãos" que esbracejam ensurdecedoras palmas quando são testemunhas destas "acções de fiscalização". Estes "exemplares cidadãos" são tiranetes em potência. Dêem-lhes uma farda e temos pela frente pequenos Estalines.

1 comentário:

f.rodrigues disse...

lamento que o subcritor do texto, confunda autoritarismo, com segurança das pessoas embarcadas.
Não compreenda, autoridade, com autoritarismo, procure criticar gratuitamente, sem apresentar soluções e fundamente com assertividaade as suas criticas destrutivas.
BOa tarde!!!