Desta vez armei-me em cidadão, daqueles muito responsáveis que se interessam pelo fenómeno eleitoral e tudo. O abstencionista militante até foi votar. Eram 8.20 – estreei a minha mesa de voto. Estive à "escuta" dos resultados eleitorais. E apeteceu-me fazer de conta que era "analista". Repito: fazer de conta. Ao acompanhar o rescaldo de eleições, reconfigura-se o adágio popular para se dizer que "de poeta, médico, louco e analista eleitoral, todos temos um pouco". Aqui virão palavras escritas por um analista tosco. Ou talvez por um "analista" que foge ao convencional, sem alinhar na postura respeitável dos analistas credenciados que aparecem só para dizerem o óbvio.
Ainda não havia projecções, ainda não eram oito da noite e os açorianos ainda votavam. O sorriso de orelha a orelha do comentador Vitorino, o embaixador do PS e do governo na RTP, falava mais alto que os números das projecções que só se conheceram às oito da noite. Foram divulgadas as primeiras projecções. Suspeito que as empresas de sondagens que trabalharam para as três grandes televisões prepararam um acordo secreto uns dias antes, pois as três projecções eram notavelmente coincidentes – coisa nunca dantes vista. Depois do banho que apanharam nas eleições europeias, não quiseram outro desaire. Ou falham todas, ou acertam todas. Enternecedora solidariedade corporativa.
Primeira impressão na ressaca imediata das projecções: só houve vencedores. A excepção moderada foi o PSD, apesar de ter ouvido uma deputada independente (aquela que era do CDS, concorreu a estas eleições pelo PSD e apoia, daqui a quinze dias, o candidato do PS à Câmara de Lisboa) assegurar que a perda da maioria absoluta se ficou a dever à líder do PSD. Ganhou o PS. Uma vitória amarga. O grande, querido líder terá que vestir a roupagem de cordeiro manso para seduzir a extrema-esquerda – e, olhando aos números, a tarefa exige um "ménage à trois". Perdeu a maioria absoluta? Foi uma penalização do eleitorado? Irrelevante, dizem os apaniguados. Vitória é vitória. E se perderam a maioria absoluta, ou a causa foi a crise – o desconfortável pano de fundo para a governação –, ou foi pela campanha de "bota-abaixismo" feita por todos os adversários (o "bota-abaixismo", esse formidável neologismo que entrou, com a chancela do primeiro-ministro, no dicionário da língua corrente). Até os comunistas, que lograram ficar em quinto lugar, entregando a palma aos arqui-inimigos da extrema-esquerda caviar, ganharam. Nada de novo: estes ganham sempre. Ao menos, disse um porta-voz, deram o seu contributo para que os socialistas perdessem a maioria absoluta. Ganharam porque os outros ganharam mas não ganharam tanto como há quatro anos.
As noites eleitorais são um expoente de desonestidade intelectual de políticos que abrem a boca para os microfones em directo. Ouvi a D. Ana Gomes, que por pouco não espumava raiva pelos cantos da boca, a caucionar a vitória incontestável do seu partido e a assegurar aquilo que ela adorava que acontecesse: isto vai virar à esquerda, para gáudio da senhora que, continuo a ter essa impressão, se deve ter enganado quando bateu à porta do PS para se filiar. Depois foi esse imenso senador da república, Jaime Gama, a triunfar no campeonato da análise vesga: convidou-nos a comparar o resultado alcançado pelo seu PS e o resultado obtido pelos democratas-cristãos na Alemanha. Só para percebermos que os socialistas tiveram uma vitória retumbante, pelo menos por comparação com a dos democratas-cristãos nas eleições alemãs. O que interessa que países diferentes sejam diferentes realidades eleitorais? Que interessa que em ambos os países haja diferentes sistemas eleitorais? Para D. Gama, o melhor é disfarçar uma vitória azeda com uns pós cosméticos que têm o perfume da desonestidade intelectual.
O que se esperava, até quando deitou os olhos às projecções? Uma parelha entre os socialistas e a extrema-esquerda caviar, sem que estes tivessem pouso no governo. A extrema-esquerda chique conseguiria conservar a sua natureza anti-sistema, passando a influenciar a governar de fora para dentro. Os números trocaram as voltas à ambição do Prof. Anacleto: o somatório dos deputados do PS e do BE não chega para a maioria absoluta. O Prof. Anacleto falou cedo de mais, quando na sua prédica já começou a impor exigências. Não está em condições de exigir nada. Nem vai ser o fiel da balança que ambicionava ser. Coitada da D. Ana Gomes, que disse, toda encrespada, "coligação com o CDS, nunca, jamais".
Agora entendo o acto desastrado do presidente da república quando se meteu na embrulhada das escutas, oferecendo de bandeja ao PS uma vitória mais expressiva do que se esperava. Esta incerteza governativa é o melhor cenário para o protagonismo que o actor político Cavaco sempre gostou de ter enquanto esteve na vida política. E que não se esqueça isto: as suas possibilidades de reeleição seriam menores se o PSD tivesse ganho as eleições. Bate certo o momento escolhido para demitir o seu conselheiro de imprensa.
Percebes agora, Rui Miguel, por que não quis ir comentar as eleições para aquela rádio?
1 comentário:
Ah, não! Pelo contrário! A tua não-ortodoxia (de estilo e de conteúdo) certamente tornaria o programa da rádio mais interessante e inesperado. Ate poderia dar o pulo para uma Antena 1 ou TSF.
Mais importante, regozijo-me com o facto de finalmente teres aderido ao voto! Eis uma boa notícia.
Post-Scriptum (acho que é melhor evitar a forma abreviada): Palpita-me que votaste branco.
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