Mote (recuperado do texto de ontem): "Pelo amanhecer, depois de todos os pesadelos que ensombraram o sono, há-de vir a alvorada com a claridade do sol nascente, vista através dos céus despejados de nuvens."
É a centelha que se desprende do horizonte que parece tingido pela escuridão impermeável. As rememorações vagueiam no torpor contíguo à nostalgia, num esforço para trazer dos tempos idos as imagens gratificantes de quem já só pertence à saudade. Uma estranha sensação, a da ausência. Sobrepõe-se a desabituação, como se ao acordar tudo ainda não passasse de um pesadelo. Como se fosse um terrível pesadelo que é desmentido pelo adocicado sabor do acordar.
De que vale prolongar o torpor da nostalgia? A anestesia que tomou conta de tudo adia-se na demissão do eu. Pode parecer que o corpo se divide entre dois hemisférios: entre persistir no tributo à pessoa ausente que cultiva as muitas saudades e olhar de frente para a existência, aprendendo as lições avivadas por essa ausência. Diante da encruzilhada, quero arremeter pelo caminho que não me aprisione no entorpecimento da melancolia. Conseguindo, mesmo assim, o difícil equilíbrio de prestar tributo a quem partiu.
Lá ao longe, onde a linha do horizonte se confunde com o céu, começa-se a distinguir uma ténue fronteira onde se aclaram as nuvens que teimavam em prolongar o torpor. Aos poucos, as nuvens dissolvem-se à medida que se apaga a anestesia do corpo perante as consumições da ausência. Os dias sombrios são isso mesmo – uma enegrecida existência perfumada pela mágoa. A mágoa que não é nutriente de coisa alguma. A melhor homenagem a quem se ausentou é consagrar a existência dos que dele se despediram. A sagração da vida é essa homenagem.
E os dias hão-de ficar mais claros. A inevitabilidade das coisas que o são acabará por instalar o convencimento de que o torpor da nostalgia desmerece a vida dos que a têm para viver. A candeia alumia-se entre o denso nevoeiro onde o corpo se desorienta. Nem que por momentos pareça perdido no meio do nevoeiro que se entranha nos ossos, consumindo o corpo na dor que se instala. A mão que pega na candeia e a alça pertence à indómita vontade de perseguir a exuberância da vida. A chama, a persistente chama que se solta da candeia, perfura a densa cortina de névoa. A teimosia da candeia empunhada acabará por derrotar o nevoeiro que parecia invencível. Então tudo se aclara.
Os dias despejados que se prometem são a lição aprendida através do crepúsculo que desaguou, por fim, no ocaso. É a força com que as duas mãos se agarraram à existência, superando as contrariedades, sem se amedrontar com os sucessivos sobressaltos que apareceram pela frente. Não serão as forças exangues de quem partiu que semeiam o mesmo comportamento entre quem ficou. Ao contrário: se há alguma virtude na letargia da saudade é o fio condutor com os dias despejados que se anunciam por diante. A tal lição de vida, uma esplendorosa lição de vida.
Eis o convencimento que se enraíza: depois do ocaso não sobra o que ser. Nessa altura, já não há candeias luminosas, nem sequer fugazes centelhas a iluminar por breves segundos a escuridão dominante. É quando me lembro do lema aprendido com o filme "O Clube dos Poetas Mortos": carpe diem – ou do tutano da vida que tem que ser sugado todos os dias. Enquanto há tutano para sorver. E força e meios para o sorver. Depois disso, quando for tempo do sono final, nem sequer há lugar a arrependimentos.
1 comentário:
A propósito do "Clube dos Poetas mortos", acho que também podias subir para cima da secretária e olhar a sala. A perspectiva dessa cadeira, onde estás há muito sentado, já não te chega, obviamente. Sobe, para veres "a alvorada com a claridade do sol nascente".
Ponte Vasco da Gama
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