Não há vez que vá ao Alto Douro sem que de lá saia encantado. Com uma paisagem que é uma lição para os sentidos, como se os sentidos reaprendessem diante da grandeza da paisagem moldada. Arrebatado com o que essa paisagem significa: os degraus esculpidos em terreno agreste, para que da transformação humana germinasse uma vinha abundante a enfeitar os montes domesticados. Os socalcos dispostos, com uma aritmética impressionante, são o testemunho da audácia da mão humana que dobrou a árdua resistência dos granitos encavalitados monte acima. Se há alturas em que sinto orgulho da espécie humana é quando aprecio, demoradamente, os montes que deixaram de ser bravios para acolheram a harmonia da vinha frondosa.
Pisar o terreno, caminhar nos socalcos, é a experiência viva do tanto suor vertido por gerações inteiras que foram arroteando as montanhas que escondem o Douro nos desfiladeiros em que terminam. O solo pedregoso, inclinado, rude; alindado nos degraus que se sobrepõem num presépio ordenado que alberga as uvas que se hão-de dar a um néctar que dizem divino. É preciso pisar os socalcos, uma arte humana que tornou a tarefa fácil. É preciso meter os pés na poeirenta terra onde se misturam calhaus graníticos, os vestígios do monte talhado pela mão do homem. E olhar em redor, escolher um monte contíguo despido de vinhedos. Ver no monte ainda virgem as suas formas arredondadas, ao longe discernir as asperezas do granito espalhado num caos natural. Depois, desviar os olhos para o monte que abraçou as vinhas. Para notar as talhadas de rocha levadas do monte até que ele aceitasse o seu novo rosto – os degraus com uma esquadria digna de um colossal arquitecto, como se ali tivesse chegado um Gulliver que, com a sua mão de gigante, ordenasse os socalcos durienses numa harmonia milimétrica. Assim dispostos para o plantio da vinha.
É com os pés pisando os socalcos que nos apercebemos da tarefa, dir-se-ia sobre-humana, que pela mão do homem se tornou possível. E humanizou uma paisagem severa, fazendo de um terreno montanhoso, e à partida hostil ao cultivo do que quer que fosse, um vinhedo formidável. Tecendo, através dos dedos dos muitos homens e mulheres que esculpiram com as suas mãos os degraus nas montanhas, uma paisagem arrebatadora.
Nisto, lembrei-me do que ouvira uns dias antes na TSF. No anúncio de uma reportagem sobre as vindimas no Douro, um catedrático de uma coisa qualquer a asseverar que o Douro, o Douro que hoje conhecemos como património mundial, foi erguido à custa de escravatura. E os conceitos valem a mesma coisa em tempos diferentes? Conheço alguns catedráticos da ciência vesga, cultores de uma ciência a que gostam de chamar "heterodoxa" ou "progressista", muitas vezes apenas o instrumento de uma agenda ideológica de que são adeptos. Curiosamente, propagam o relativismo como instrumento de análise (e no relativismo até estamos de acordo). Mas como podem apregoar o relativismo e depois fixar conceitos imóveis no tempo para tirar as conclusões que são simpáticas à militância com que confundem a sua ciência? Quem pode, no seu juízo, falar em escravatura quando se olha o Alto Douro em retrospectiva?
Dizem que a ciência avança quando os seus intérpretes descobrem novos métodos de análise ou chegam a conclusões que destapam novos horizontes. O que parece exagerado é torcer a análise e apreciar uma realidade por um conceito na sua aplicação contemporânea: se o que se fez no Douro quando ele começou a ser erguido a pulso foi escravatura? É escravatura tal como a definimos hoje, ou escravatura como era definida ao tempo em que tantos homens e mulheres foram esculpir os montes em alindados socalcos? Mas se é escravatura na sua roupagem actual, como se aplica aos tempos de antanho?
Talvez o catedrático de uma coisa qualquer (que dissertava com a certeza que os catedráticos emprestam ao que dizem) não tenha percebido a ofensa ao Alto Douro inteiro. Às sucessivas gerações que lá deixaram o seu suor, para hoje o catedrático se extasiar quando empreende viagem até aos vinhedos durienses. Ainda fico a pensar, meio perplexo: escravatura? E se não fosse essa "escravatura" a que se dispuseram homens e mulheres que romperam os montes para fazer o Alto Douro, quanta mais miséria não teriam famílias inteiras passado?
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