Ouço lá dentro o ruído da televisão. Dão notícias de uma gala da agremiação desportiva mais representativa da cidade. Fala o eterno presidente da agremiação regional. Com aquele sotaque carregado e tão típico da cidade. Aquele horrível sotaque. Digo: um autêntico atentado à língua que se convencionou ser a língua da norma.
Não somos a Itália, com uma profusão de dialectos regionais – ouvi contar, uma vez em Itália, que quase existe um dialecto por cidade. Por cá temos pronúncias regionais, maneiras diferentes de acentuar certas palavras, regionalismos que só existem nas regiões que vulgarizaram esses termos; mas não temos dialectos (tirando o mirandês). Distingue-se um alentejano de um minhoto, ou um transmontano de um açoriano, pela forma como falam. (E, ao que sei, dentro da mesma região os locais conseguem identificar diferentes declinações do idioma: um habitante de Vila Real denuncia a sua pertença ao chegar a Chaves). Não sei se é por ter nascido no Porto e por sempre ter aqui vivido (descontados os dois anos e meio que estive emprestado ao Minho castiço), mas é o sotaque daqui que mais me agride os sentidos.
É isto que me causa confusão: falar à moda do Porto é uma deformação do idioma. É sintomático quando a turba se reúne no estádio onde aquela agremiação regional disputa jogos de futebol: quando a equipa marca um golo, ouve-se em uníssono um coro de bardos excitados celebrando o "guôlo", as goelas bem abertas para dar mais ênfase à sílaba onde o imaginado "u" se abre demoradamente. De resto, é enigmático como uma palavra com duas sílabas se transforma, mercê dos caprichos de uma pronúncia que corrompe a língua, numa palavra com três sílabas ("gu-ô-lo").
Tenho para mim que a gente daqui que carrega forte no sotaque regional é a que possui mais apetência para aprender francês escorreito. As sílabas que terminam em "ã" ("mamã") depressa ganham outra acentuação, tão tangente ao "ãn" que os franceses usam com abundância. Não é por acaso que "mamã" dito à maneira do Porto é tão parecido como o francês "maman". A terrível confusão em que labora o sotaque portuense tem outras manifestações: quando as palavras terminam em "ão" dizem-se "om" ("côm" em vez de cão), mas quando a sílaba terminal soa a "om" no idioma original, o sotaque da cidade encarrega-se de a transformar em "ão" ("são" em vez de som). Esta gente que ostenta, orgulhosa, o sotaque portuense entrega-se ao swinging das palavras.
A minha palavra preferida é "vedante". Se for pronunciado com o forte acento nortenho, transfigura-se em "bedaunte". Outra vez com forte declinação na sílaba onde se aloja o "u", para que o som "aun" apareça com toda a vivacidade: "bedaúnte", assim mesmo com acento no "u" para se saber que é aí que a palavra mais se inclina. Há outro regionalismo que me enche as medidas – e digo regionalismo porque não me é dado a conhecer que o termo seja empregue noutras regiões: "morcão" (do dicionário: "indivíduo indolente, bisonho ou aparvalhado; lorpa; mandrião"). Aqui diz-se "morcom".
E ai de quem caçoe do sotaque daqui, que leva logo com o opróbrio sulista, como se ser sulista fosse a maior das aleivosias. E há mal em ser um portuense de gema a atirar-se ao sotaque dos seus conterrâneos? Ou a perfídia é ainda maior, tal como se fosse uma heresia, pois a um dos seus jamais seria permitido desdenhar dos patrícios que comungam a mesma pertença? Deve ser das tais coisas muito sérias e respeitáveis. Daquelas que nos ensinam a manter um hirto respeito, com proibição total de sátira para se não apanhar com os maus fígados dos ciosos guardiães da genuína pronúncia que assassina o idioma.
Que me seja autorizada a dissidência. Venham lá esses nomes feios que me apoucam. Nem assim hei-de silenciar as palavras a contragosto pela estética duvidosa do sotaque que tenho como coisa horrível desta terra maravilhosa onde nasci e que habito.
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