10.9.09

O cão multado (por estacionamento proibido) e outras excentricidades



Foi na Austrália: a dona levou o canídeo a passear e, antes de entrar numa loja, deixou-o preso no exterior. Acontece que a senhora, porventura distraída, "estacionou" o cão num lugar proibido – reza a notícia. Vieram dois polícias zelosos e passaram uma multa ao animal. A multa foi afixada na trela do cão. Assim como assim – terão raciocinado os agentes da autoridade – o bicho estava num lugar onde não se podia parar. Não consta que o canídeo tivesse sido agressivo ao ver um dos homens fardados a depositar a multa na trela. O cão não mordeu nos polícias.


Esta história é deliciosa. Um monumento à absurda condição humana. Tanto quanto sei, o que se estaciona são automóveis e outros veículos motorizados ou não – mas veículos e não animais. Nunca me foi dado a conhecer que os cães eram agentes envolvidos no código da estrada. Não têm bilhete de identidade, nem cartão de contribuinte, ou rendimentos próprios. Li a notícia e fiquei mais perplexo com o destino da multa: o cão tem morada própria? Os agentes da autoridade anotaram no bloco de apontamentos o número da licença do animal, para depois endossarem a responsabilidade a quem ali "estacionou" o cão? Admito que estivessem muito atarefados, os zelosos agentes fiscalizadores do trânsito de pessoas e, sabe-se agora, de animais irracionais também. De outro modo, teriam esperado à sombra de uma frondosa árvore até que a dona recolhesse o cão do "estacionamento" proibido.


Cá está um exemplo de cumprimento escrupuloso das regras – o que nuns sítios existe por defeito, noutros abunda em excesso. Se ali ninguém podia parar por haver um sinal de estacionamento proibido, ninguém é mesmo ninguém. Caso contrário, os animais irracionais que pacientemente esperassem pelos donos tinham uma regalia. E como neste mundo moderno todas as desigualdades são intoleráveis, aos senhores agentes não interessava saber se aquele espaço estava ocupado por um cão, um automóvel, uma trotineta, um skate ou uma roulotte.


No domínio da bioética, há quem proponha a atribuição de direitos iguais aos hominídeos e aos animais (e, devo dizê-lo, concordo com a ideia). Admito que esta notícia é um bálsamo, um paradoxal bálsamo, para os seus particulares interesses. Um animal, tal como um humano, pode ser destinatário de uma multa. A igualdade de direitos entre seres racionais e seres irracionais já esteve mais longe. Só é desagradável porque culminou com a desconfortável cominação sobre o canídeo.


Não me custa imaginar que os zelosos polícias australianos devem ter aprendido pela mesma cartilha daquele ministro de cá, o da administração interna (o maior cromo deste governo, como é que ele se chama? Já me lembrei: Rui Pereira). Aquela pose de estadista, muito grave, reflectida nos fardamentos que exibam a autoridade de quem representa o detentor do poder sobre os súbditos. Continuando com o exercício imaginativo: se o agente que passou as multas fosse um Rui Pereira dos antípodas, e se fosse convidado a explicar o bizarro acto de multar um cão por estacionamento proibido, teríamos direito a um discurso muito articulado, típico dos tipos que aprenderam a manha toda numa universidade de direito, com muita sofística de permeio com a convicção de quem de uma patranha faz uma verdade irrefutável. Diria o Rui Pereira dos antípodas: a proibição é total e absoluta; atinge pessoas e coisas (e aqui socorria-se da arcaica fórmula das leis que qualifica os animais como coisas). Atiro eu daqui: e extra-terrestres, também?


Não sei se, quando chegaram aos respectivos lares, os agentes da autoridade, decerto de peito inchado por terem passado outra multa de estacionamento, não tinham à espera as respectivas consortes. Elas tinham confeccionado um manjar à base de ração para canídeos.


Uns minutos depois, deparei com uma ideia apresentada na campanha eleitoral pela Frente Ecológica e Humanismo (PEH) (a coligação entre o Movimento Partido da Terra e o Partido Humanista): a "moção de censura popular". Um referendo convocado por petição popular, no máximo duas vezes em cada legislatura, para submeter à consideração dos eleitores a demissão dos titulares dos órgãos de soberania. As utopias não custam nada – estão pelo preço da uva mijona. Admito simpatia pelo espírito da ideia (mais responsabilidade para os eleitos e mais poder efectivo nas mãos dos eleitores – a primeira como consequência, a segunda como causa). Mas existe uma improbabilidade retumbante: só na Austrália é que já possível multar animais irracionais por estacionamento proibido.

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