19.11.09

Ah, o idealismo da juventude…


Também há gratas surpresas. Elas irrompem contra o entorpecimento dos dias cinzentos. Despontam por entre o céu plúmbeo que, de tão persistente, entristece. Afinal, as gerações mais novas não são apenas um bando de gente alienada, indiferente ao que a rodeia, a rondar os alvores da iliteracia. (Repare-se nesta acentuação – "mais novas" – que tem um significado que lá mais para a frente será desvendado). Há uns raios de luz que ensinam, primeiro, que o alçapão das generalizações pode ser uma cortante armadilha e, segundo, que há gente muito jovem que observa o mundo com atenção, lê muito e tem uma perspicácia que se julga ausente nas gerações mais novas.

É quando somos jovens que a força de viver borbulha com toda a intensidade. É quando somos jovens que o voluntarismo se distingue. É curioso: o voluntarismo costuma andar de mão dada com doses de robusto idealismo. Não digo que não haja idealistas entre gente mais velha. (Eu acho-me um idealista – ou diria, para ser mais rigoroso, alguém preso a certas utopias; isso explica que me recuse a admitir que já não faço parte das gerações jovens?) Só que é mais fácil encontrá-los entre pessoas mais jovens, que despertam todos os dias para a aprendizagem do mundo.

Deve ser doloroso o idealismo voluntarista que ferve nas suas veias. Quando os ouço a destruir de cima a baixo as coisas como elas são, o mundo como aparece diante dos seus olhos, o mundo que deploram na jactante hipocrisia que nele detectam, divido-me entre a condescendência e a angústia que compartilho com eles. A condescendência não é pose superior; nem sequer alvitre de quem já andou pelas margens desses idealismos (ou, porventura por recusa em admitir algum envelhecimento, nunca deles se ausentou) e tem consciência da imbatível espessura das coisas na sua forma real. Sem ponta de ironia, é de admiração que se trata. Admiro os mais novos por serem tão militantes dos idealismos que percorrem as entusiasmadas palavras que proferem.

Lá mais para a frente também vão perder o rasto à idade em que o sangue anda sempre fervente nas veias. Também vão notar um arrefecimento dos entusiasmos. À medida que forem notando a rigidez das coisas na sua forma actual. E sempre que lhes entrar pelos olhos a composição dos interesses que alimenta o conservadorismo triunfante. Vão ter tempo para perceber que as coisas são como são, invariavelmente diferentes da forma que corresponde aos desejos interiores. Serão das dores maiores que os esperam: de cada vez que se esboroar por dentro um fragmento de um dos idealismos em que vivem imersos, é a acalmia das coisas que os faz aceitar o mundo na forma tão diferente dos idealismos que fervilhavam na intensidade dos dias vividos em acelerado compasso.

Os idealismos esbarram na resignação que vinga. Pode ser um braço de ferro e estarem convencidos que o voluntarismo de quem esbanja as forças pródigas de quando se é novo há-de falar mais alto, derrotando a insidiosa pulsão de aceitar as coisas como são. Assim que o tempo vier na sua sedimentação, e que a acalmia das tempestades que dão fervença à vida irromper como a bonançosa atmosfera que toma o lugar da intempérie, dos idealismos sobram os despojos espalhados pelo chão, os idealismos todos desfeitos em cacos. À medida que a idade for crescendo, esvaem-se as forças para recolher os despojos só para recompor os ideais. Não há voluntarismo que resista: os despojos serão definitivo restolho que encerram a tumba dos idealismos na sua arqueológica forma.

Comentava com alguém ao meu lado como é admirável dar conta que os mais novos continuam empenhados em idealismos voluntaristas. Dizia que hão-de envelhecer e os idealismos acabam por arrefecer, até por serem negados. Ou por conveniência, ou por resignação, negados. Quando vinha na viagem de regresso, pensava nisto tudo. E interrogava-me se a teimosia de certos idealismos, que em mim continuam a dobrar os acenos à resignação, prova a recusa em envelhecer. Ou se insisto em idealismos porque tenho medo de envelhecer.

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