Amigos de infância que saltaram a varanda que separava do abismo. Já cá não estão. Vou sabendo que a frágil condição em que se empenharam diluiu resistências. Já foram. Sugados pelo vórtice do abismo para que saltaram.
Há uma miragem escondida nos abismos que acenam, tão sedutores? É uma colossal incógnita que vegeta na escuridão que se alcança de cá de cima, ao fitar a profundidade interminável do poço que parece ter força gravitacional. Renunciando às cautelas de quem os avisa, alguns mergulham na incerteza do abismo. Por cansaço da mesquinhez que os rodeia, a mesquinhez que definha. Ou por excitação da juventude que evapora os vestígios de sensatez, empurrando para o precipício de onde nada se alcança. Vemo-los, todos os dias, encharcados no suor que ganharam por tentarem, sem conseguirem, extrair-se aos tentáculos do abismo. Almas caridosas fazem a sua função: avisam do passo em falso. Já tarde. A descida aos fundos é uma viagem de sentido único.
O salto descomprometido, ou apenas um salto que se confere depois de arrumadas as muitas hesitações, e quando dão conta a força da gravidade já os empurra na direcção do fundo. Alguns combatem a descida aos infernos? Outros entregam-se aos prazeres que julgam encontrar quando o abismo encontra o seu fundo? Tacteiam as paredes que enjaulam o abismo por onde descem, num esforço vão de travar a marcha? Ou deleitam-se com a queda livre, o ar gélido a esbarrar na cara e a despenteá-los furiosamente?
Era fácil sentenciar o desvario dos que mergulham na escuridão de onde sabem que não regressam. Era fácil fazê-lo pelos que mantêm lucidez e têm a certeza que o percurso abismal é a ceifa fatal. Fácil, mas errado: as pessoais vidas amanham-se na sua intimidade. Mal seria se houvesse norma que criminalizasse os desvarios dos que se entregam à demência do abismo. E nem o digo por inutilidade da norma: uma vez encerrados no hospício, nas profundezas onde ninguém consegue chegar a menos que lá fique aprisionado, quem os podia condenar se nem sequer ouvem as censuras dos mais chegados, a censura colectiva que a muito consciente sociedade atesta?
Talvez saibamos, os que ainda vogamos nas águas da lucidez, que são nocivos os efeitos dos abismos que se insinuam. Sabemos, por experiência alheia. Olhando aos cadáveres que emergem à superfície, rejeitados pelas forças ocultas do abismo que não querem ser um cemitério onde se sepultassem os seus adoradores atraiçoados. Concluímos que a estadia abismal teve um fatal ocaso. Juntamos as pontas soltas e damos por assente que o salto cego num abismo não tem remissão. Já não haverá tempo sequer para o arrependimento enquanto o corpo vai em cambalhotas desordenadas contra as paredes musgosas por onde escorrega o precipício.
Sabemos tudo isto, tão penhores das certezas quando em nós julgamos estar hasteada a lucidez. Só não sabemos se detrás da diáfana bandeira não se escondem mundos fantasmas, sedutoramente deliciosos. Não sabemos se a descoberta desses quartos paralelos mas escondidos não remetia a espessura das coisas (como as conhecemos) ao domínio da ilusão. A vultuosa factura, a que paira com os pingos todos da incerteza, detém-nos a tempo. Rodeamos o abismo. Espreitamos, só para ver se as hesitações se desfazem numa derradeira pulsão, ou para convocar o necessário acto de coragem, aquele suster de respiração seguido da contagem até três que é o pontapé interior que empurra o corpo para o precipício.
Como é profundamente errada a condenação dos que se aliviam das insuportáveis dores atirando-se para um abismo. Quem somos para nos arvorarmos juízes das vidas que pertencem a quem delas tem o único leme? Somos um rotundo nada, uma mera insignificância, metidos na impossibilidade de sermos a vida dos outros. A eles, aos que se extasiam na embriaguez do vertiginoso precipício, um sentido respeito.
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