27.11.09

“Técnica de relaxamento”


Num preguiçoso passeio de zapping pelos intermináveis canais da televisão por cabo, aterrei num canal que se chama Zen. Sucediam-se imagens de praias paradisíacas, daquelas que enchem folhetos das agências de viagens. Sempre meticulosamente despidas de gente, como se fosse possível à horda de turistas que lá desagua terem uma praia deserta. Logo a seguir, continuaram as imagens de uma água azul-turquesa, suponho que daquelas águas tépidas de que não apetece sair, as areias brancas e muito finas e uma barreira de coqueiros a semear a sombra que protege do intenso, húmido calor.

Começava um programa sobre "técnicas de relaxamento". Uma voz suave e feminina propunha-se ensinar a "técnica de relaxamento" que desata os nós da insónia. À medida que se repetiam as pacatas imagens das praias que por estes dias de anunciada invernia já fazem inveja (nunca estamos satisfeitos com a estação dominante: nem sequer temos inverno e já apetecia passar uns dias num daqueles lugares exóticos), a voz balsâmica ensinava os truques para um sono retemperador assim que o corpo beijasse os lençóis da cama.

A voz feminina exortava a que fizéssemos mais ou menos isto: "ponha-se de pé, bem no meio do compartimento da casa que tiver maior espaço. Grite. Grite bem alto. Não se atemorize: grite com toda a força que os pulmões e as cordas vocais permitirem. Se não se sentir à vontade com o grito, cante qualquer música, mas cante bem alto. Precisa de expelir todas as energias acumuladas dentro de si. Gritar ou entoar a música em voz alta são o melhor remédio para expulsar as energias que retardam o sono. De seguida, termine a expulsão das energias de que já não precisa abanando com vigor os braços, as pernas e a cabeça, de um lado para o outro. Não se acanhe se achar que os movimentos são desengonçados. Quanto mais desengonçados, mais energias inúteis vai libertar. E mais depressa vai adormecer".

Tenho a impressão que esta "técnica de relaxamento" deve valer para quem vive no meio do campo, numa casa isolada do resto. Para a imensa maioria que vive nas cidades, apinhada em apartamentos com excelente qualidade de construção – daqueles que há agora com um isolamento acústico de primeira água, de tal forma que um simples garfo caído no andar de cima troa como se fosse uma bomba a rebentar no tecto –, a "técnica de relaxamento" deve servir para arranjar muitos inimigos entre a vizinhança. Ou então para sermos vistos como dementes que urram furiosamente à hora do deitar.

Também tenho a impressão que duas pessoas que acabam de juntar os trapinhos não podem embarcar nesta bizarra "técnica de relaxamento". Nesses dias de aprendizagem mútua, em que uma febril paixão une os corpos num frémito diário, a descoberta de estranhos urros ao deitar talvez actue como um icebergue a poisar na relação. O que diria um dos apaixonados se visse o outro a contorcer-se numa ensandecida coreografia de gestos disformes do corpo antes de irem para a cama? Aposto que não é o melhor prólogo para uma noite de tórrida paixão.

Às duas por três, pus-me a pensar: e se, um dia destes, ensaiasse esta "técnica de relaxamento"? Não é que dela careça, pois as insónias deixaram de me visitar desde a adolescência. Era só para experimentar a sensação, só para confirmar – como desconfio – que estas "técnicas de relaxamento" não passam de um embuste. E, apesar de não ter vizinhos nos dois andares de cima, não consegui imaginar a função. Admito: talvez por não precisar de qualquer "técnica de relaxamento" quando chega a hora do deitar. Ou será apenas porque me fartei de rir da minha própria figura triste, como se de repente saísse de mim e fosse espectador da minha função de relaxamento?

Sabe-se lá se não se perdem carreiras promissoras no bailado contemporâneo, ou tenores de ópera, ou vocalistas de bandas de heavy metal (depende do timbre da voz) só por as pessoas se intimidarem diante da estranheza do que lhes é sugerido nesta "técnica de relaxamento".

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