Esteja sol ou faça chuva. Esteja o avião a planar na calmaria do vento ausente enquanto se faz à aterragem, ou contorcer-se entre os ventos cruzados que sobressaltam os passageiros que já fazem preces por terra firme. Quando o avião toca no solo, palmas, muitas palmas para o comandante que trouxe o aparelho a terra firme.
As palmas começam tímidas. Um passageiro toma a iniciativa, com um envergonhado encosto de uma mão na outra que se faz ouvir, quase imperceptível, no avião. Talvez seja o passageiro que mais medo passou durante o voo. Sentir as rodas do avião no enfim beijo ao asfalto da pista de aterragem é um alívio para este passageiro. O efeito de contágio alimenta o aplauso que percorre a claustrofóbica cabine onde viajaram, a trinta mil pés de altitude, aqueles passageiros. As palmas já não soam tímidas. Há mais gente a aplaudir do que passageiros inertes. Julgo que até os pilotos, encarcerados no cockpit hermético aos passageiros – a sua torre de marfim – conseguem escutar o ruído do aplauso colectivo.
(Eram outros tempos, quando uma palavra à simpática hospedeira permitia uma rápida visita ao cockpit, para apreciar a parafernália de instrumentos e de luzes multicolores e os pilotos no seu métier).
O que significa o aplauso colectivo? Simples descompressão das horas em que todos os temores invadiam desassossegados passageiros? Agradecimento aos pilotos que trouxeram o avião até a aeroporto seguro (não acreditassem, no seu íntimo, que isso fosse possível)? Ou apenas porque o passageiro do lado está entusiasmado a bater palmas, como se tivesse acabado de assistir a um teatro que o excitou, e mal fica se as mãos continuarem sossegadas na sua inércia? Nunca me apeteceu bater palmas aos pilotos dos aviões em que viajei. Não julgo que seja ingratidão. Ponho-me a pensar noutros meios de transporte: antes de sair de um autocarro, de um comboio, de um táxi, ou do metro, volto-me na direcção do condutor e desfaço-me em agradecidas palmas? Se nos fiarmos nas estatísticas e na lei das probabilidades que asseguram o avião como o meio de transporte mais seguro (há mais acidentes e mais vítimas noutros meios de transporte), os aplausos deviam ser encomendados aos condutores de autocarros, comboios, táxis e metros.
Às tantas, estou para aqui a dar – e de graça – ideias para os sacerdotes da igualdade. Pois esta é uma intolerável desigualdade de tratamento que desvaloriza o trabalho mais arriscado de quem nos conduz noutros meios de transporte que não o avião. Está tudo ao contrário – o que talvez diga muito da percepção que as pessoas têm das coisas, ao baterem palmas a quem menos merece. A estética, nas artes, está inundada de exemplos semelhantes.
Das observações enquanto passageiro de aviões consegui extrair a seguinte lei: há mais palmas nos voos de companhias low cost. É lá que os voos são baratos, é nestes aviões que se democratizou (ou se vulgarizou, depende da perspectiva) viajar de avião. Adivinho: muitos aplausos partem de gente que está no baptismo de voo. Por certo estão convencidos que é da praxe agradecer com sonoras palmas quando o comandante consegue a façanha de aterrar o avião. Devem andar distraídos deste mundo: pelos aviões que ocupam os céus todos os dias, e pela escassez de acidentes de aviação, deviam saber que a aterragem não é uma transcendência. Em voos transatlânticos, os passageiros são mais discretos – ou por estarem habituados a viajar de avião, ou por chegarem extenuados depois de longas horas de voo confinados à exiguidade do lugar que lhes calhou. Às vezes as palmas demoram-se num longo exercício tribal: é quando estão de regresso à pátria hordas de turistas que fazem gala em mostrar os adereços que compraram nos destinos exóticos onde estiveram de férias. Ainda arrebatados pelo exotismo do lugar e pela folia em férias, com aqueles sorrisos que transbordam para além do rosto, organizam o demorado aplauso tribal quando o comandante faz tocar as rodas do avião na pista de aterragem.
Estas palmas só servem para atear a sensação de casta que os pilotos de avião têm de si (ou da impressão de casta que fazem passar quando se passeiam, tão altivos, pelos corredores dos aeroportos). E para dar fogueira a uma intolerável desigualdade. Agora que os abaixo-assinados estão na moda, devia alguém tomar a iniciativa de um que fosse a favor do obrigatório aplauso a condutores de autocarros, comboios, táxis e metros.
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