O vento furioso que vem do oceano coalha as águas que chegam ao areal. Sobra o restolho do majestoso mar que se afaga ao vento tresloucado. O mar que galga as distâncias até se esmagar nas rochas alisadas pela erosão ou nas areias penteadas pela espuma sobrante.
Subo ao promontório. Termina numa falésia que se inclina sobre as ondas que se revolvem. O estampido das ondas quando se quebram nas rochas indefesas é rouco, magistral, aterrador. De uma nitidez assustadora, como se as ondas alterosas fossem vizinhas, quando afinal se alojam longe, onde o precipício mergulha nas águas. Que seja pelo temor das alturas: os olhos fixam-se onde o fio do horizonte se funde com o mar tempestuoso. Os olhos retêm a turbulência das ondas que cavalgam umas nas outras, desordenadas, espalhando uma densa rede de espuma que, dir-se-ia, é a fúria de um oceano açoitado pelo saracoteio do vento. Ou, poder-se-ia ainda dizer, a espuma que sinaliza o cansaço das águas, tantas vezes entaladas entre solavancos. O cansaço que tem fim prometido quando enfim as águas se estatelam nas areias molhadas.
Ora pincelado pela bruma de um aguaceiro temporário, ora aliviado por um sopro do vento que podou as nuvens, o horizonte é um quadro inteiro de serrania marítima. Digo serrania porque o leito onde cavalga o oceano é uma interminável sucessão de declives, a água em constantes cabriolas, trepando aos cumes das ondas que logo se dobram em declives íngremes que fazem as águas arremeter até onde se esconde, nas suas profundezas, o solo onde repousam. É nesta estouvada coreografia que desalinha a maresia, que julgo encontrar os nutrientes para a míngua dos estados de alma. Os olhos nem dão conta de como o tempo se demora enquanto contemplam a dança desordenada, como as ondas tropeçam umas nas outras. Como se algumas estivessem em agonia, trepando às costas das que vão à frente.
Este mar de fundo já não vinga; depõe-se diante dos meus pés, no altar do promontório. Os caprichos da geografia desenharam a língua de terra e a parede de rochas como seu túmulo. Ali chega, com a imponência das ondas que ninguém ousaria desafiar, para se debater com a incapacidade de perfurar as rochas que se entregam como peito acolhedor. O mar de fundo, travado pela inércia das rochas gastas pela erosão do tempo, esgota-se num fio ténue que se consome nas gotículas aspergidas desde as profundezas. Lá no fundo, onde o abismo marca encontro com os mares que o beijam.
O mar de fundo, este mar que vomita ondas medonhas, é um esgar das minhas intenções edificantes. Quando os dias outonais por fim coincidem com o Outono em pessoa, e o vento furioso soprado das funduras do Atlântico entrega o mar enervado, é como se tudo mudasse. Como se nesse mar enervado encontrasse, paradoxalmente, o receituário para apascentar as dores interiores que se consomem no mar chão quando o ausente vento o consente. É no mar profundo que bebo os elixires que extasiam. Os elixires que caucionam as telas admiráveis que, enfim, desfilam diante dos olhos.
O mar de fundo, em cambalhotas inesgotáveis, é providencial. É em nós, bem nos fundilhos do ser, que habitam as soluções. O mar de fundo que há em nós só precisa de ser acirrado; precisamos de deitar o rosto ao vento enfurecido que a vilania dos sentimentos queria incendiar. O mal é quando nos iludimos pelos cânones do conforto, tão propensos ao resguardo do vento que sentimos tão agreste.
Oxalá conseguíssemos perceber que a notória essência das coisas está na antinomia do que delas consideramos. Fora das convenções. O mau tempo não seria mau. O mar tempestuoso seria um hino às espontâneas palavras e aos sentidos em estado puro. E o vento que se diz agreste, apenas o bálsamo para descobrirmos em nós o mar de fundo que teimamos em estrangular.
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