2.11.09

Muddy waters



As imagens agressoras. Como setas a entrar pelas córneas, subindo ao cérebro até causarem uma dor cortante. Tudo ficava confuso, subitamente. Até para quem é acusado de "insensibilidade social". As imagens invasoras mostravam o lado oculto da cidade. Onde se esconde a miséria dos que vivem ao relento, sem saberem se o que se acerca é o último inverno do desassossego. Eram imagens que desfocavam. Daí a súbita confusão nas ideias.

A gente apinhada no que só por incontinência mental se pode chamar "lugar abrigado". Um lugar abrigado é um tecto, paredes, salubridade, uma cozinha onde os haveres de um mês tragam víveres para dentro dos tachos. Fora disso, é o relento traiçoeiro que dá guarida aos muitos sem-abrigo que se acotovelam em sítios que as brigadas de apoio já mapearam. O simples facto de lhes chamarmos "sem-abrigo" é paradoxal quando alguém sugere que se escondem do frio da noite num qualquer "lugar abrigado" que é a ausência de um tecto e de paredes e de salubridade e de uma cozinha que dê subsistência.

Há por ali gente de todas as idades. Gente abandonada pela família. Gente que tropeçou nos azares e tudo perdeu, menos o acolhimento da rua que, nisso, é democrática. Pois a rua é o último lugar que se recusa a quem já perdeu tudo na vida, tantas vezes até a própria dignidade. Lá estão, em magotes. Ora mergulhados em cobertores que mão amiga tratou de fazer chegar às suas mãos, ora abraçados ao calor de cartões que outrora foram embalagens de televisões e frigoríficos e outros electrodomésticos.

Uma brigada de assistencialismo privado percorre os recantos onde à noite se refugiam os inditosos. Oferecem-lhes uma refeição quente. Talvez a única refeição quente de um dia (ou de alguns dias), já a noite se confunde com a madrugada, numa providencial interrupção do sono testemunhado pelo céu escuro. Não acordam estremunhados. Abençoam a interrupção do sono. Ao menos saem das águas pardacentas em que vagueiam os sonhos que deitaram uma mão traiçoeira ao sono. São sempre miríficos ou terríveis, os sonhos. Ou porque os iludem quando sonham que levam uma vida decente, apanhando com todo o fel do mundo quando entendem, já acordados, que o sonho era uma passadeira falaciosa que multiplica a agonia. Ou porque reproduzem, na inquietação do sono, a prisão sobressaltada em que as suas vidas se acantonaram.

As pessoas acordavam, retiravam-se de abrigos improvisados, arrastavam o passo lento até à carrinha onde fumegavam os termos que acolhiam a sopa e um prato de carne e de massa. Na ronda daquela noite, só uma pessoa recusou o alimento. As voluntárias não insistiram. Devem estar treinadas para não incomodarem quem sofreu uma avalanche de infortúnios e, num particular dia, prefere ensimesmar no jejum. Mas aquela voz em surdina – tão em surdina que não dera para perceber se o homem era idoso ou jovem –, aquela voz de uma cara escondida nos andrajos que o cobriam, a voz que dissera não à refeição quente, seria a voz audível de uma desistência de tudo, mas sobretudo dos sacrifícios inomináveis que o haviam ali levado? Estaria o homem tão doente que nem apetite teria para a, porventura, única refeição decente do dia? Ou estaria irado com a sua desdita a ponto da fúria ter devorado o próprio apetite?

As imagens que volteavam eram como punhais que iam e vinham, cravando-se em aleatória coreografia sangrenta no corpo. Nada, nesta interior carnificina, era comparável às águas lamacentas em que vivem mergulhadas aquelas existências. Parece que os pés, de tanta força fazerem para manter o corpo à superfície, se enterram na espessura do lodo pantanoso que é o leito dessas águas. Pois o túnel da miséria é como uma concha em que o orifício esconde uma aterradora escuridão, a medonha solidão, os dias incertos com mais agonia.

Há imagens agressoras que terminam com a bonomia de um dia que irrompeu com as cores garridas que emprestam encanto a todas as coisas do mundo. Até para quem resiste aos imperativos cânones da "sensibilidade social", as imagens do roteiro da pobreza e da miséria foram excruciantes. A dor interior é nutriente de si mesma: por renúncia comodista, ou por sentir uma impotência de acção, tomei nota da incapacidade (pessoal; e colectiva) de erradicar as bandeiras enegrecidas da indignidade.

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