11.11.09

Somos elitistas, mas somos coerentes?



Gostos musicais. Fazemos gala em glosar o pregão: música só para uma imensa minoria. Vou-lhe chamar música alternativa. Há quem diga, com notório orgulho, que cultiva o género da música vanguardista. Os que reprovam quaisquer rótulos, por a música não merecer classificações sectárias e limitativas, porventura melómanos militantes, entoam o seu gosto pela boa música e ponto final. Não interessa que gostemos ou não de rótulos. Às vezes, por conveniência – para sabermos do que estamos a falar – convém usá-los.

Uma tribo. Como todas as tribos, comunicam-se por sinais. Neste caso, musicais. Como adjacências, há certos sinais exteriores que identificam os aduladores da música alternativa. Um dress code. Os livros que se lêem, os nomes de autores que são um must. Os locais nocturnos que se frequentam. Noutras artes, a inevitável propensão para escolher artistas que vivem à margem. Até uma certa militância – ou, pelo menos, simpatia – por movimentos políticos e cívicos que ostentam os sinais de diferença que atraem aqueles que estão cansados da modorra em que vivemos. Alguns membros da tribo são auto-encomiásticos: consideram-se localizados na vanguarda, como se pertencer a uma vanguarda lhes emprestasse a superioridade que autoriza a olhar as não vanguardas com desdém.

(É escusado fazer a advertência que se impõe quando o verbo escorrega para a generalização. Os estereótipos são a sua própria viscosidade. Fixam-se regras e esquecemos as excepções. Mas isso não vem ao caso para o assunto tratado neste texto.)

Talvez pela pretensa superioridade pelo menos estética que exibe, a tribo reclama para si o altar da coerência. Essa coerência evapora-se quando um artista que havia sido glorificado entretanto atingiu o estrelato e passa a ser reconhecido pelo grande público. O nicho onde nidificam os artistas alternativos é um viveiro de onde saem alguns nomes que depois chegam aos topes, ganhando a simpatia dos milhões. Perdem-se nos apetitosos caminhos da fama, dos enormes proveitos materiais. São vendidos, no entendimento dos guardiães do templo alternativo. Depressa caem em desgraça entre a tribo a que pertenceram. Mesmo os trabalhos mais antigos, quando andavam pelas frequências habitadas pelos meios alternativos, são renegados. É como se, subitamente, aquele artista perdesse os atributos que eram admirados antes de ser seduzido pelo magma da notoriedade.

Estas palavras são uma reflexão interior, auto-crítica em estado puro. Foram tantas as vezes que remeti ao esquecimento artistas que transitaram para a esfera onde reside o grande público. Preconceito puro, pois a proscrição do artista tinha efeitos retroactivos. Não tolerava a nova produção artística por ter caído no goto de milhões. Desconfio que o que me atemorizava era haver uma multidão a coincidir na minha estética musical. No fundo, tinha pavor de que os meus gostos se democratizassem. Estalinisticamente, expedia o artista para um canto obscuro da biblioteca musical. Sentia-me traído. Nem sequer parava dois segundos para pensar se a culpa (se é que se pode falar de culpa) pertencia ao artista. Que podia ele fazer se um seu trabalho, inicialmente cultivado pela tribo alternativa, conseguia cativar a simpatia do grande público? Às vezes, é certo, estes artistas ajudavam à repugnância da tribo alternativa: assumiam poses condizentes com o estrelato a que haviam sido conduzidos. Massificavam-se, destruindo qualquer vínculo de identificação com a forma alternativa, não massificada, de estar na vida da tribo de onde vinham.

Em tudo isto, inquieta-me sentir que a coerência fique para segundas núpcias. A menos que a única coerência que possa ser apontada à tribo alternativa seja a fidelidade a artistas que não ponham o pé fora do território alternativo. Nesse caso, perdemos objectividade: as obras musicais passam a ser apreciadas por quem as faz, jogando-se toda a subjectividade que impede um juízo imparcial, objectivo. Mas a obra não nasce desligada do seu autor. A objectividade é inseparável de alguma subjectividade (e não menciono aqui a subjectividade como a liberdade do ouvinte interpretar à sua maneira a produção musical que consome). Todavia, abro o peito para esta doída confissão: a estalinista proscrição de vendilhões artistas soa-me a um rombo na ditatorial coerência.

Talvez o mal seja outro: a tirania que a coerência em mim exerce.

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