12.11.09

À prova de bala



Vergado o braço, ficam os despojos que arqueiam o corpo na sorumbática humilhação? Talvez não, se o cenário se não montar assim. O segredo está na capacidade para desviar o olhar. Na insensibilidade que destoa provocações. Em saber contornar as armadilhas. Sejam as óbvias, ou as que aparecem dissimuladas na névoa propositada.

Uns dizem que a dignidade não se magoa. Pensam atavicamente, como se ainda fossem dias de cavalheiresca defesa da honra em duelos onde só falta o apimentado código de honra que obrigava os rivais a recuarem dez sincronizados passos para se voltarem e soar a destreza (ou apenas a sorte?) daquele que premisse o gatilho mais depressa e com pontaria. Eram tempos que há muito deixaram de pertencer ao nosso mundo. E, todavia, teimamos em dar o peito às balas, imaginando que somos um qualquer super-herói com poderes sobre-humanos.

As balas esventram a carne. As balas que não são feitas de metal nem disparadas por revólveres não sangram a carne, mas fazem o dano maior: tomam conta dos segredos interiores, exaurindo as resistências amealhadas que são o tónico para aguentar as de outra maneira insuportáveis dores do mundo. O segredo mais bem reservado é o de saber como podemos ser à prova de bala. Exige-se a paciência que o quotidiano altera com frequência. A provação será então a dobrar: aturar os atentados à paciência, para depois estaquear as reservas que levantam o intransponível paredão contra os traiçoeiros ângulos que aparecem onde dantes apenas existia terreno plano e sem estorvos.

O receituário – o melindroso receituário: tornar a frágil carne num couraçado contra os desgraçados que se persignam por incomodar. Há quem faça disso causa de vida. É o seu particular elixir. São os diabretes instalados na existência alheia, porventura a flagrante confissão dos mal resolvidos problemas de que não se conseguem libertar. Angustiados pela vidinha mesquinha e desinteressante, vingam-se das pessoais frustrações em quem se não reveja nessa infausta forma de ser.

A espessura do tempo sedimentado traz a lucidez. Fica então transparente a distinção entre o acessório e o essencial. Os ataques de videirinhos desditosos nem merecem ser arrumados na gaveta do acessório. São menos do que acessório. O que é essencial? Arrebanhar a lucidez que atrasa o relógio que marca a cadência da desinteressante vidinha dos que infernizam existências alheias. O grande desafio dos dias correntes é saber ser à prova de bala. Ou a forma contemporânea de sermos super-heróis, que é o ensimesmamento.

Cair na cilada dos mentores da infernização é fazer o jogo que se renega. Repetem os que não admitem a pessoal dignidade espezinhada: deixamos de honrar os sedimentos do que somos se simularmos a inércia perante a maledicência. Eu proponho o contrário: que a maledicência fique entregue a quem a pratica. Será um diálogo impossível. De um lado, um furão possuído por excrescências mentais. Do outro, alguém que nem sequer dá conta daquela existência. E não é por sobranceria. É por um dever de higiene mental. É que os belicismos argumentativos também provocam feridas, cicatrizes profundas por onde se esvaiu muito do sangue que é nutriente da existência.

Talvez os anos dobrados sejam a caução maior da aprendizagem. Taluda de sóbria perenidade onde os campos são verdejantes, pincelados por um céu deslumbrante mesmo quando está tingido por nuvens que se acastelam anunciando a agreste precipitação que todavia esverdeia os campos. O resto, irrelevâncias que os homens do lixo tratam de varrer. No restolho encontram as balas perdidas, as balas incapazes de perfurar a blindagem em que a existência se converteu.

Toda a cura contém a sua maleita, porém. Desconfio que um corpo à prova de bala se transforma numa estátua insensível. A difícil levitação dos afectos.

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