Henry, o avançado francês, ajeita duas vezes a bola com a mão antes de a passar para o colega que marcou o golo. O golo que pôs a França no campeonato do mundo. O Wigan, que joga na primeira divisão inglesa, apanhou uma cabazada como já não se vê por estes dias: 9-1.
Henry, num insólito acto de franqueza, confessa o crime desportivo que um árbitro com carências oftalmológicas não viu. Defende, contra os interesses da sua equipa, que o jogo devia ser repetido para retroceder a batota. Os interesses instalados, os senhores que, como em todo o lado, quando representam um sistema instituído se recusam a tomar decisões que representem abalos telúricos devastadores, avisam: impensável, a repetição do jogo. Sancionam a batota, numa edificante lição para quem os escuta. Aos irlandeses – as vítimas deste crime desportivo – só chorar toda a raiva a que julgam ter direito, uma vingança servida no éter.
Os humilhados jogadores do Wigan querem compensar os adeptos pela vergonha que passaram. Estão dispostos a reembolsar os adeptos que foram até ao estádio adversário ver, um atrás do outro, nove golos na baliza onde estava o seu guarda-redes. Acreditam neste acto simbólico. Lá no fundo, todos os jogadores da equipa que ficou conhecida pelas más razões sabem que a devolução das libras gastas no infausto bilhete fica longe de recompor a humilhação dos adeptos. Ao menos, estão dispostos a compensar a sua devastação interior – todos se riem deles, motivo da chacota geral. Os acabrunhados jogadores, já derreados pelo golpe quase fatal na honra por figurarem nos anais de uma das derrotas mais pesadas na memória no campeonato, ainda foram arranjar energias para recompensar os adeptos pela tremenda frustração com que saíram do estádio adversário.
Tenho para mim que há muita gente, dentro e fora do meio, muito preocupada com as reacções de Henry e dos atletas do Wigan. Os cultores da lógica dos resultados, aqueles mourinhos e outros que desonram o nome de gregos filósofos, os que admitem, com impudência, que o que conta é ganhar sem saber de que forma, terão sido os primeiros a atirar-se ferozmente a estas ilhas de honradez. Denunciam os líricos lampejos de integridade por abrirem precedentes que se voltam contra a sua maravilhosa forma de estar no mundo. Essa honradez, a honestidade de quem se denuncia em público como fautor da falsificação de um resultado, a probidade de quem quer compensar a pavorosa humilhação dos que os seguem com religiosidade, atávicos comportamentos que merecem feroz combate.
Estes lampejos são, até para o niilista empedernido, a prova de que nem tudo é sombrio no mundo habitado. Ainda há ilhas exemplares, rodeadas pelos tubarões da indecência, um hino melodioso aos ingénuos e aos líricos que teimam na condição. Talvez o repto a que interessa olhar: não os lamentáveis anjinhos que se passeiam na indolência da vitimização, revirando os factos convencidos que conseguem caminhar sobre a água, convencidos que somos todos tontos a quem se deita areia para os olhos e com duas palavras vãs e estamos arrumados a um canto, destituídos de argumentos.
Há por cá muita gente que devia pôr os olhos em Henry e no Wigan. Andam inflamados, alguns até desorientados, pois o "guru" (do momento) está metido no enésimo escândalo que queima a sua reputação. Como é gritante o contraste ao desviar o olhar para águas não pantanosas, onde se repetem as imagens da falcatrua de Henry que o próprio queria reverter e o ar cabisbaixo dos jogadores do Wigan que querem ir ao bolso para recuperar a dignidade dos adeptos. Por cá, essa gente inflamada e desorientada faz as vezes de mastins da justiça. Desqualificam os tribunais, apontam a artilharia para um juiz que – julgam, tão desorientados andam – deve ser o mais recente intérprete da animosa cabala que dizem estar montada para o "assassinato político" do querido líder.
Deviam aprender. Que a justiça e a política são altares separados, estanques um ao outro. E, sobretudo, deviam aprender com Henry & Wigan, Lda.
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