Às vezes, tão inebriados pela espuma dos dias, não prestamos atenção ao que interessa. Não decapamos a espuma para ficar à mostra a essência de tudo. Quando nos livramos da espuma, sobra uma ininteligibilidade capaz de deixar o queixo caído. Ou isso, ou diante do ininteligível ao comum dos mortais há-de contrapor um qualquer iluminado, atestando que nos atrapalhamos por causa dos escassos dotes intelectuais que previnem o discernimento.
É o que sinto quando testemunho certas campanhas publicitárias. O mal pode ser meu. Repito: talvez ande para aqui a sobrestimar as minhas capacidades, quando afinal elas não suficientes para perceber certas mensagens que essa casta tão inventiva (os publicitários) lega à humanidade. A mais recente pérola foi uma campanha publicitária da GALP. Convidam os clientes a abastecerem os automóveis com combustível. Até aqui, tudo bate certo: vender combustíveis é o negócio da empresa. A normalidade termina aqui. Logo a seguir a GALP oferece bilhetes de comboio a quem tiver comprado combustíveis da marca.
Ando a tentar perceber a manobra. Meto gasolina no automóvel e, em troca, recebo bilhetes para viajar gratuitamente no comboio. Que me perdoem a estultícia, mas não sei como hei-de reprimir esta interrogação: pretendem que meta gasolina no automóvel só para poder andar de graça no comboio? Vamos supor que todos temos muita sensibilidade ambiental, de tal forma que nos encantamos com meirinhos da ecologia e com publicidade concebida por empresas que estão no pódio dos produtos que agridem o meio ambiente e que, talvez para maquilhar a sua má imagem, descobrem formas fantásticas de mostrarem que são muito amigas do ambiente. Começamos a abastecer os automóveis nos postos da GALP. Mas deixamos os automóveis quietos nas garagens, pois passamos a viajar de comboio. E gostamos tanto de andar de comboio que continuamos a ir à bomba de gasolina só para obter o brinde dos gratuitos bilhetes de comboio. Ao fim de quanto tempo tenho o depósito do automóvel a transbordar?
Como o povaréu costuma dizer, os mafarricos nunca dão ponto sem nó. A GALP deseja que abarrotemos os depósitos dos automóveis de combustível, pois isso faz de nós utentes dos comboios de periferia e, no final, todos (a gasolineira e os clientes que forem na conversa) ficam com a consciência apaziguada: deram o seu modesto contributo para melhorar a qualidade do ar que respiramos. Só que, afinal, os bilhetes de comboio não são gratuitos: é preciso comprar combustíveis à GALP para que a CP nos deixe viajar à borla. É como proclamam certos economistas: "não há almoços grátis".
Gostava de saber – se fosse possível sabê-lo – que impacto está a ter esta campanha: há mais gente a andar de comboio? Os cobradores que picam os bilhetes deparam-se com mais gente na posse de vales que autorizam a viagem gratuita no comboio de periferia? Andam menos carros nas estradas de acesso à grande cidade? O negócio dos estacionamentos pagos a preço de ouro já está a agonizar? Já algum especialista mediu a qualidade da atmosfera e concluiu que o ar se tornou milagrosamente mais puro? E outra interrogação mordaz: há gente a armazenar na garagem a gasolina que já não cabe nos depósitos dos automóveis? E as vendas da GALP, aumentaram por causa desta campanha publicitária?
Posso estar a encarar o problema com as lentes erradas, mas se a intenção da GALP-que-de-repente-se-tornou-muito-amiga-do-ambiente é que deixemos os carros nas garagens e nos desloquemos de comboio entre as periferias e a grande cidade, por que nos obriga a comprar combustíveis? Que alguém faça as contas rigorosas (portanto, não valem contas feitas por economistas que costumam fazer orçamentações no sector público), pois os tempos não se prestam a desperdício de dinheiros. Só para saber se não estamos a gastar mais dinheiro se formos sensíveis à lengalenga da GALP do que se comprássemos o passe mensal da CP. Desconfio que sai mais barato pagar para andar de comboio.
E lá se esboroa a magnífica publicidade da GALP, a campanha que nos quer fazer crer que a GALP é o nosso particular Al Gore.
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