29.3.10

Aparelhos dentários


In http://novohamburgo.org/colunistas/odontologia/img/v_dentao3.jpg
Novos, sobretudo novos. Mas mais velhos também. Quando se pensaria que os dentes dos mais velhos já não tinham remédio, entortados e a caminho da recessão natural do envelhecimento. Usam aparelhos dentários que corrigem o encavalitamento dos dentes. Uma rede metálica apara a andadura dos dentes. Os sorrisos afeiam-se.
Sinal dos tempos: quando era criança e os aparelhos dentários não tinham a profusão de agora, quem os usava envergonhava-se de os ter. Se nessa altura já tivesse sido inventado o conceito de bullying, os miúdos que tinham a desdita de carregar aparelhos dentários eram vítimas preferidas dos azoados que se especializavam no bullying. Há que descontar os custos dos tempos de antanho, quando a tecnologia ainda marcava passo pela cadência da tartaruga e aqueles aparelhos que se punham para corrigir más posturas dentárias eram pesados e inestéticos. Eu diria, ainda mais inestéticos.
São os sinais dos tempos que se puseram. Dizem-me que os aparelhos que desenfeitam muitas bocas são diferentes dos aparelhos da minha infância. Mais leves, materiais mais resistentes, mais eficazes na função. E os dentistas de agora devem ter aprendido marketing na universidade. É que também me dizem – agora do lado de quem viu os dentes emprenhados com a armadura metálica – que os dentistas são mestres no convencimento dos pacientes. Explicam por a mais b que aqueles dentes vão entortar fatalmente se não se puser o aparelho que corrige encavalitamentos precoces de dentes. Para piorar o diagnóstico, pintam cenários muito sombrios caso o paciente seja renitente em seguir o conselho clínico.
E sim, parece que os modernos dentistas aprenderam marketing até pela técnica de vendas agressiva que usam: como o adorno metálico que se prende aos dentes é coisa para custar muito dinheiro, congeminaram esquemas de crédito e facilidades de pagamento. Os pacientes – ou, dir-se-ia, os clientes? – ficam desarmados. É pegar ou largar. Quem sabe se na anestesia não vai misturada uma substância hipnótica que comanda a vontade dos pacientes, só capazes de dizerem sim à proposta de negócio.
O negócio prospera. A atestar pela quantidade de bocas que, quando se abrem, mostram a armadura metálica que aprisiona os dentes ao alinhamento desejado. Prova que os modismos são isso mesmo – modismos que vão e vêm com os ventos sazonais. Aqueles miúdos que foram motivo da zombaria alheia sentem-se injustiçados? Se não forem movidos pela extenuante vingança, pelo contrário: fez-se justiça anos mais tarde. Olham para a profusão de bocas desenfeitadas com os talvez só um pouco menos inestéticos aparelhos dentários, olham em redor e notam a indiferença geral. Na sua imensa bondade, sentem-se reconfortados por ninguém troçar dos que trazem um freio metálico nos dentes.
Não interessa que os puristas ensinem que a subjectividade impede as ilações categóricas. Arremeto contra isso para fixar um juízo – que, de tão pessoal, vale o muito pouco que vale: aquelas bocas atadas pelo metálico freio da armadura povoam os rostos com um travo de feiura. Afortunadamente, o modismo retirou carga negativa aos aparelhos dentários. As pessoas que os trazem riem sem preconceito, falam sem vergonha, bocejam quando estão distraídas. Se ficar provado que os dentistas são mais dentistas do que especialistas de marketing, haveremos de lhes prestar tributo quando um lustro de tempo passar e as bocas (já desapossadas da armadura dentária) tiverem dentes mais alinhados. E houver menos visitas aos dentistas por causa dos problemas atrás de problemas semeados por um encavalitamento dos dentes. E se, afinal, os dentistas não forem tão especialistas de marketing como se pensava?
Nos interstícios da feiura das bocas desenfeitadas com armaduras metálicas, um par de perplexidades: como serão os beijos lânguidos dados por estas bocas? A outra perplexidade fica nas entrelinhas, para não ser acusado de obscenidades em forma de texto...

4 comentários:

Abel disse...

bem visto, continuo gostando do estilo, do pensamento alternativo, do ir-contra-a-corrente; parabens de novo; vou (per) segui-lo, posso?

Milu disse...

Ultimamente já não vejo tantos sorrisos metálicos, isto é, dentaduras ostentando aparelhos dentários, com a crise anda muita boa gente a ficar tesa e como tal lá se vão as peneiras,mas há uns tempos era demais. De cada vez que me deslocava à escola do meu filho até ficava assombrada, já que muitos aparelhos via principalmente nas meninas, cujos dentes às primeiras impressões não apresentavam qualquer anomalia, muito pelo contrário, a maior parte das vezes eram bonitos e regulares. Sendo assim, porque usavam o inestético aparelho dental? Algumas vezes cheguei a pensar que seria por vaidade e ostentação, porque a verdade é que os seus portadores faziam alarde do preço de tal apetrecho, o que me leva a dizer que esta recente moda é tão-só um sintoma de dinheiro a mais. Exceptuando alguns casos, o uso destes aparelhos era perfeitamente dispensável. Actualmente dá-se tudo aos filhos a troco de nada, depois admiramos-nos muito quando eles não prestam para nada. Talvez eu esteja a ser um pouco rude, mas a minha maneira de pensar assenta em grande medida em tudo aquilo que me é dado observar.

PVM disse...

Milu:

A certa altura refere que "esta recente moda é tão-só um sintoma de dinheiro a mais". Permita-me corrigi-la: era sintoma de crédito a mais. A ostentação que por aí anda era financiada com dinheiro emprestado pelos bancos. É muito estilo de vida acima das posses.

PVM disse...

Caro Abel:
Bem-vindo!