18.6.10

Muitos chapéus para poucas cabeças


In http://www.afabricadoschapeus.com/imgnov/bowler_black.png
Os vetustos chapéus desesperam por cabeças que não são seu pousio. Foram atraiçoados pelas modas, voláteis como todas as modas o são. Outrora foram adereço exigível em homem apessoado. A pose aristocrática democratizara-se com o chapéu de coco. Era um sinal de distinção e respeitabilidade. Uma cabeça destapada era uma boçalidade. Tinham serventias, os chapéus. Escondiam desgraças capilares. Encobriam calvícies envergonhadas. Ocultavam seborreias e a muita falta de banho que as gerações de antanho cultivavam. Protegiam da chuva e abrigavam do frio vento de inverno. As doenças da estação abraçavam-se à tela felpuda dos chapéus, isentando os garbosos machos desses padecimentos.
Hoje, esses chapéus são uma curiosidade antropológica. Há até museus consagrados à chapelaria – o sinal vivo de que a indústria caiu em desuso. Quando irrompem modismos efémeros como o vento temporão, cabeças reencontram-se com bonés de multifacetada forma e feitio. As modas podem mudar, mas os tiques de comportamento são mais resistentes. Desse tempo em que os varões usavam distinta chapelaria sobra uma regra de conduta: dentro das casas tira-se o chapéu por deferência com o anfitrião, ou é-se mal-educado. Os chapéus podem ter passado de moda; a codificação de comportamentos reaviva-se, até entre muita gente nova, quando um estouvado qualquer nem repara como é de “mau tom” manter o chapéu se já há um telhado a proteger a frágil moleirinha.
Mesmo quando o modismo do momento é o detonador do chapéu como adereço, há mais cabeças que chapéus enfarpelados. Habituámo-nos à nudez da parte mais alta do corpo. Será para refrescar as ideias – o que não é mal pensado, afinal açambarcados pela majestosa crise do pensamento. Se um cientista vier a descobrir que a cabeça agasalhada por um boné reprime a fluidez do pensamento, teremos a nova cruzada dos fascistas higiénicos: porão o tabaco de lado enquanto direccionam a artilharia para os chapéus. Nessa altura, talvez nem os museus da chapelaria fiquem em pé.
Era pena que assim fosse. O pensamento – nem o mais alto pensamento – não merece tantas honrarias. Que atentado ao património genético da espécie, assim vertido num dos milhentos fragmentos que são o seu complexo ADN. A chapelaria é traço vivo desse património genético.
Mas eis que, de repente, do lado contrário irrompe uma lava espessa que vomita outras interrogações. Diríamos que o chapéu protege cabeças. Evita que o vento, com uma estocada enfurecida, despenteie as melenas arranjadas pela batuta de tanto primor. Um chapéu protege a queda de cabelo? O vento que desarranja penteados é um colosso que pode muito mais. Pode arrancar cabelos pela raiz quando leva tudo à sua frente em dia de ira sinistra. Mas pode ser tudo pelo lado oposto. Outro cientista a provar que a propensão genética dos homens para a calvície não quadra com a protecção da chapelaria. Esse cientista acabaria por trazer ao mundo uma estrondosa descoberta: os chapéus são os fautores da erosão dos cabelos, por serem seus mantos de asfixia. Historicamente, as mulheres nunca foram tão atreitas aos modismos da chapelaria diversa. E são dispensadas da acomia pelos milagres da genética. Estava descoberto o segredo. Os chapéus nem iam ao banco dos réus, a condenação imediata assim assinada. Já não se resolvia o problema dos calvos que já o eram. Só ia a tempo de prevenir a calvície dos que a ela estavam encomendados, sem o saberem, desde o parto.
Hoje, os chapéus são uma raridade. Há muitas cabeças que passam descobertas por cada chapéu com que nos cruzamos. De coco, nem vê-los. Desconfio que a repugnância da ditadura salazarista ajuda ao desuso. Há mais depressa gente de idade a envergar a típica boina achatada com carrapito cimeiro que identifica um comunista à distância.
É como dizia lá atrás: os modismos são volúveis como o tempo.

1 comentário:

Pedro disse...

Pois é. Eu comprei hoje um chapéu exactamente na fábrica dos chapeus.
O chapéu dá nas vistas..,coisa de que não gosto , porém.., dá muito jeito , é muitissimo ùtil.
Só experimentando se descobre a utilidade.
(Comprei um com abas ).
Uma coisa é andar à torreira do sol com cabeça descoberta.., outra é levar chapéu.
Como gosto de andar a pé e já me tinha sentido mal ao andar debaixo deste calor de ferver miolos..,resolvi dar um pontapé no preconceito..,e começar a protejer a cabeça.
Neste tempo de férias..,recomendo.