30.11.12

Requiem pelos nabos (houvera um)


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGtXLdTJ6g9iMB1jdl3rS5EGCfwk3bVVX6wTdGY9pe_fE4-hvwgDrudsnCSefygzHKJ0ARz3e3WETjvPibRSKqpkoXMgApxNASj3Tod7_h9oQUYggIGGM3TpE9c2PtvuiJGcYJ/s320/nabos.jpg
Podia ser dos tubérculos, a prosa. Da sopa deles, ou da que é feita com aromáticas ramagens que os encimam. Ou podia perorar, a prosa, sobre o travo acidulado que emprestam, os nabos, ao bacalhau de consoada. Em vendo bem as coisas, se calhar, ao jeito de metáfora, é sobre tudo isso (e mais ainda).
Os nabos têm personificação. Os maiores e mais nutridos são os que se ornamentam de uma erudição só ao alcance de um escol. Trazem consigo um bornal de certezas onde não há espaço para um laivo de dúvidas, que essas sobram para os que se entretêm com a abstrusa filosofia, ou para os pobres de espírito consumidos em sua terrífica ignorância. Estão três passos mais à frente dos demais. Veem muito além das habituais lentes que enformam o discernimento comum. Sobredotados da atualidade. Para não sobrar qualquer vestígio que turve a impetuosa moralidade que transpiram, apoucam quem tiver o topete de aparecer pela frente a beliscar calosidades anquilosadas.
Há nabos pequenos e nabos grandes. E os de médio calibre. Os nabos que ficaram aquém do sumptuoso tamanho não se aventuram na presunção. Ouvem as suas limitações. Não metem pé em terreno escorregadio. Os nabos com pose estadista, talvez por cobiçarem ser estadistas, sabem da poda como a poucos é permitido saber (por contumazes incapacidades de intelecto). São príncipes de um nabal de um habitante só (o príncipe em pessoa).
Às vezes apetecia entregar o leme da coisa às mãos de um nabo príncipe. Só por um dia – ou por um mês, requisitando mais vinte e nove nabos da restrita confraria, para tratar dos assuntos candentes. Só depois se aquilatava se eram predestinados para a causa pública, ou se nidificavam num amadorismo ungido por um caldo de presunção beatífica (adornada por uma autoimagem maior que a bolçada pelo espelho por onde se fitam).
Bem vistas as coisas, estes nabos, como os tubérculos espécimes, são matéria-prima para um caldo agridoce. Em estando dia sorumbático, irritam. Fora desses, que são os mais frequentes, instantes, são um laudatório à boa disposição. Só quem não aprecia nabos (os tubérculos) não atinge a dedução. 

29.11.12

Ficheiros secretos (1): como a Merkel manda na Europa


In http://im.ft-static.com/content/images/ed9357f2-afce-11e1-b737-00144feabdc0.img
Uma investigação top secret de agentes infiltrados por movimentos ativistas contra o atual estado de coisas, está em condições de fazer revelações bombásticas. A urdira de que toda a gente sabia (sem possibilidade de dissensão) vai ser provada com a reportagem. Os serviços secretos da Alemanha foram ludibriados. Microfones foram semeados nas salas dos ministérios em Berlim. Uma câmara escondida foi implantada no cabelo de Merkel por uma cabeleireira devidamente treinada. O que vai ser a seguir confidenciado é um terramoto. Nada vai ser como dantes.
Os agentes conseguiram obter gravações onde Merkel, entre dois bombons suíços e uma ida ao banho turco, mandata embaixadores para pressionarem os governos dos pobretanas países do sul a escolherem gente (para o governo) que tenha sido educada nas virtudes alemãs. Querem gente adestrada, gente respeitadora das façanhas germânicas, que propague os benefícios da retidão nas contas públicas.
Descobriram que quando a Merkel reuniu em Paris com Hollande, enquanto lhe afivelava a gravata para esta se inclinar para a direita, ditou instruções teutónicas que o assessor francês se apressou a registar. Também se soube que, num jantar de gala com Obama e o imperador do Japão, arrotou à mesa depois de embolsar três canecas de cerveja bávara, ao arrepio do protocolo diplomático.
Houve comunicações telefónicas que, apesar de encriptadas, foram interceptadas pelos ativistas que usam máscara sorridente e bigode aparado. Ficou-se a saber que até no Banco Central Europeu a danada manda, com Draghi a curvar-se respeitosamente perante a arrogância da chancelerina. Quando veio a Lisboa, no jantar de gala mandou o primeiro-ministro anfitrião dar o lugar ao dileto (dela) ministro das finanças, outra vez em atropelo do protocolo diplomático.
O pior de tudo, a descoberta mais insidiosa, é uma reunião da Merkel com o estado-maior das forças armadas num bunker que julgavam protegido contra a fuga de informação e, em pose orgiástica, berrou que estavam quase a alcançar o que Hitler não conseguira obter por bélicos meios.
É o Armagedão que se aproxima. Falado em alemão, para pouca gente o entender.

28.11.12

O labirinto


In http://imgs.obviousmag.org/archives/uploads/2007/070830_blog.uncovering.org_underground_5_small.jpg

Um vulto. Parecia que um vulto vinha atrás. Estava em sobressalto por causa das sombras que se fundiam na escuridão e de uns ruídos medonhos que vinham do nada. Continuava a andar entre corredores húmidos e baixos. Às tantas, água fétida misturava-se com os sapatos.
Andava em círculos há horas. Quando via uma sobra de luz entreolhando uma fenda, arremetia caminho. Logo a seguir, voltava a usar a candeia que segurava nas mãos. O labirinto parecia não ter fim, não ter saída. Havia portadas encerradas a cadeado. Por mais que as empurrasse, só conseguia fazer ranger as dobradiças das portadas tomadas pela ferrugem. O rastilho dentro da candeia apagava-se. O combustível rareava. Temia que o espaço dentro do labirinto cerceasse o ar. Lembrava-se de pesadelos em túneis apertados, o lugar onde a claustrofobia sitiava os gestos. Lembrava-se de filmes de suspense, um quase féretro na armadilha de um túmulo para onde fora empurrado, encerrado com umas pazadas de terra revolvida.
Estava inquieto com o vulto que, tinha a certeza, o perseguia há algum tempo. Numa encruzilhada, encostou-se à parede humedecida pelo musgo. Estava exangue, a lucidez em evaporação. E depois de tantas encruzilhadas, não sabia por onde meter os pés. O vulto parecia sussurrar a também respiração ofegante quase no seu dorso. Virou, num ápice, o rosto para trás. Ninguém. Mais ansiedade: ao escutar passos que eram uma ausência, a imputar ruídos a alguém que julgava coincidir no labirinto, percebia que o entendimento entrara em letargia. Na encruzilhada, meteu pelo caminho da esquerda. Mais à frente, notou um sítio por onde já passara (o esqueleto de um animal de companhia sinalizava aquele sítio).
Lá fora, já era hora para ter anoitecido. Com este pensamento, o teto começou a descer, lentamente. Teve de baixar a cabeça. Arquear o corpo para não ser esmagado pelo peso dos tijolos molhados que se deitavam, nas sua tonelagem, sobre o corpo. Já de joelhos, prostrado e resignado a não encontrar refúgio do labirinto onde entrara sem saber porquê, sentiu uma mão a pousar no quadril. Era o tio em pijama, com uma lamparina a incendiar a escuridão do quarto. Tinha sido um pesadelo.

27.11.12

Cores desmaiadas


In http://alemdovinho.files.wordpress.com/2010/05/outono-21.jpg?w=510
O compasso do olhar impunha-se sobre as cores. Viera dos esverdeados marítimos, onde a humidade sussurra sobre a vegetação que se adestra a preceito. Mas os montes chegavam, a altitude subia mais junto do céu, e as árvores deitavam-se no solo pedregoso e seco. A folhagem era diferente. As cores, num assomo de pretéritos e desatentos olhares, dir-se-ia serem desmaiadas.
Um esboço outonal. Muita gente diz que é o leito da melancolia. As cores acastanhadas veem enlaçadas com o céu habitualmente plúmbeo que dita os dias outonais. Mas os sentidos acobertam-se nas feições. Podem os dias assim não ser da vivacidade celeste quando a primavera se apodera da clepsidra. E podem as convenções ser um engodo que atraiçoa os sentidos. O olhar detém-se na paisagem. Na mancha que, assim ditam as primeiras impressões, galvaniza a monocromia acastanhada. Mas depois os olhos habituam-se. Redescobrem um sortilégio, o sortilégio que estava ocultado. Decifram os enigmas das diferentes tonalidades encavalitadas na paisagem. O acobreado, o castanho já escurecido, o alaranjado, as várias tonalidades avermelhadas. As diferentes camadas que compõem a paisagem.
As cores não são desmaiadas. São uma paleta garrida, decantando a luminosidade esvaída que perfura o céu de estanho. É o céu orquestrado pela espessura do estanho que empresta a singularidade às cores que o olhar desatento se apressaria a ruminar como desmaiadas. Incendeiam o fogo de uma floresta que se prepara para a hibernação invernal. Anuncia-se o clima glacial, os ramos das árvores já nus tomados pela neve que vier às altitudes que a tal se emprestam. 
As folhas caducam, inteligentes. Desembaraçam as árvores – como se diria das cores que, nas suas múltiplas tonalidades acastanhadas, se desembaraçam da vivacidade? Não. Os ramos das árvores são carnudos, uma pele espessa que sabe domar o frio que vier. Como as cores outonais, desembainhando a aparência tristonha da paisagem, são como um avental de policromias que resguardam os sorrisos escondidos.

26.11.12

Sociedade Protetora dos Presuntos de Chaves


In http://img232.imageshack.us/img232/4783/presunto.jpg
Era numerosa, a confraria. Gente anónima e doutores, artistas de várias artes, jornalistas, senhores da política, toureiros, desportistas, cientistas, mulheres de limpeza, funcionários públicos e desempregados. Entre a gente perita nas artes pantagruélicas, de chefes de cozinha de gabarito a cozinheiros de tasca. A causa, levavam-na a peito. A Europa queria que os presuntos fossem feitos de maneira asséptica. Era impossível: mais valia matar os presuntos.
Eles e elas, os da confraria, tinham a intrusão dos burocratas europeus como heresia. Puxavam-se-lhes os alambiques das tradições. Quando um burocrata enfiado numa distante torre de marfim as queria joeirar, acusavam a ofensa. Decidiram emprestar nome pomposo à entidade: Sociedade Protetora dos Presuntos de Chaves. Pois descobriu-se que o burocrata que assinou a diretiva assassina, um dinamarquês analgésico, teve a ideia de atacar os presuntos quando o levaram a um restaurante que tinha o nome dos presuntos de Chaves.
A Sociedade Protetora dos Presuntos de Chaves veio para os jornais e para as televisões – para isso é que serviam os jornalistas e os senhores bem postos na política, para abrir as portas das notícias, que o espaço público é escasso e a competição por ele é uma selva. Primeiro doutrinaram os concidadãos, a maioria sempre filiada no peditório da preservação das tradições. (Descontem-se os vegetarianos e os adoradores de uma asséptica forma de vida.) Depois bombardearam a imprensa da Europa. Embaixadas de produtores de presuntos de Chaves fizeram périplo pelas grandes cidades europeias.
Artistas de toda a Europa, depois de terem amesendado opíparas tapas à base da fumada perna do bácoro, prestaram-se voluntários da causa. Que chegou a foros do excesso: um ramo mais radical da Sociedade Protetora dos Presuntos de Chaves (não reconhecido oficialmente pela dita) primeiro atirou ovos podres ao burocrata dinamarquês, depois estilhaçou na cabeça do seu chefe um saco de plástico cheio de dejetos de gaivota, depois fez rebentar um petardo à porta do fautor da aleivosia contra uma tradição gastronómica.
Foi a melhor publicidade que alguma vez se pôde imaginar. E gratuita: vendia-se presuntos (de Chaves e de onde eles tivessem DOP) como nunca. Um dia, já a proibição deixara de estar na agenda das imensas leis europeias, a Sociedade Protetora dos Presuntos de Chaves votou, por unanimidade e aclamação, o burocrata dinamarquês como patrono da dita.