(História infantil para sobredotados)
Um dia fora da escola. Enfim! Não tinha
de suportar aquele conhecimento bafiento que as professoras passam,
tratando-nos como atrasados mentais. Já temos doze anos, não somos crianças de
seis! Como se isso não fosse martírio que chegasse, ainda aguentamos professoras
que, para além de não terem jeito para a função, só estão à espera da reforma
generosa. Hoje, fiz gazeta. Vim até à praceta central, ali mesmo ao pé do
coreto. Há carrosséis, carrinhos de choque, matrecos, bifanas e farturas. Excitação
acompanhada pelo ruído ensurdecedor que berra através das colunas, a música
todavia insuportável a ecoar, estridente e distorcida. Paguei uma viagem no
carrossel que tinha cavalos a fazer de conta. Paguei a segunda e a terceira. Já
que esta vida é um perene faz de conta, quis embarcar nas fantasias dos meninos
da minha idade (e dos adultos que não disfarçam a melancolia). Fechei os olhos
enquanto o cavalo minha montada ia acima e abaixo. Abstrai-me da campainha que,
mesmo ao lado, anunciava o fim de uma corrida nos carrinhos de choque. Aqueles
minutos pareceram um dia inteiro. Quando desmontei do meu Rocinante castanho, a
treva já tinha ocupado o lugar do sol. Era inverno, anoitecia cedo. E eu, que
nunca gostei de noturnos, fui feliz para casa. Montara um cavalo que consegui
domar. Andei por planícies e vales, o cavalo levou-me a um isolado promontório.
De onde me entronizei rei de um reino apenas habitado por mim. Aos poucos, uns
iguais a mim trouxeram residência para o meu reino. Percorria-o montado no meu
fiel cavalo. Os como eu faziam a vénia nas minhas visitas a trote pelo reino.
E, todavia, vivíamos como iguais. Éramos todos confrades, irmanados por uma
deficiência por excesso. Ali ninguém nos chamava, com notório desdém das suas
fracas capacidades (sem o saberem, coitados), “adiantados mentais”. Desci do
cavalo. Ao abrir os olhos percebi que não era o meu reino, nem o inacessível
promontório que o fizera tal. Era a terra dominada pela gente comum. Quis
voltar ao meu Rocinante branco. Meti as mãos nos bolsos, mas as moedas já lá
não habitavam. Não fui em vão. Aquela noite era a primeira noite sem enjoo dos
medos noturnos.
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