13.7.15

O cisne negro

Teho Teardo & Blixa Bargeld, “A Quiet Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=zqTjbassv3g
O velho, às vezes, não sabia o que fazer do tempo. Do tanto tempo que era livre depois de se ter reformado. Deixara de trabalhar vai para uns anos, mas os sintomas agravavam-se à medida que os anos se amontoavam no calendário desde a reforma. Lembra-se de contar os meses que faltavam para o dia da reforma. E depois as semanas e, mesmo no término, até os dias contava, como se fosse um presidiário a encurtar o tempo para a libertação. Fora uma labuta longa e dura. Merecia a reforma.
Agora que sabia qual era o sabor da inatividade, vivia amordaçado por um murmúrio constante. Amaldiçoava todos os dias em que as preces clamavam por um encurtamento do tempo até àquele dia (vinte e três de novembro) que as leis o deram como terminado para a vida ativa. Quando ganhou o direito à reforma, não sabia o que sentir. Julgava que era descompressão. Era sua crença que depois da habituação ia gozar as delícias da passagem à inatividade. Que raio, isso acontecia com todos os que viveram tempo de sobra para saber o que é entrar na reforma. Mais a mais, não roubara nada a ninguém: a reforma era a justa compensação para o tempo que se começa a extinguir, para o cansaço de uma vida que já não habilitava as mesmas capacidades.
Convenceu-se de tudo isto e de outros lugares comuns que vinham a preceito. Porém, não conseguia combinar as ideias cerzidas com os sentimentos que assomavam à pele. Não aprendeu a lidar com a enxurrada de tempo desocupado que entrava por todos os poros. Tentara um pouco de tudo. Até voluntariado. Faltava a organização do trabalho (como se habituara, até nas reuniões do partido – de que, entretanto, se desfiliara). Faltava o que dantes julgava ser uma pressão quase insuportável, mas que agora percebia ser a genética do trabalho. Nem era um salário que faltava, que se mentalizou para o significado do voluntariado.
Errava pelas ruas. Errava pela casa. Imerso na mais absoluta solidão (a consorte finara dois meses depois de ele se reformar). Afastara-se de todos. Sentado no banco do jardim, apreciava a coreografia dos cisnes que flutuavam nas águas lodosas do lago. Notou no bando de cisnes. Na sintonia de gestos, como os cisnes repetiam os harmoniosos movimentos, até quando vinham a terra debicar os pedaços de pão oferecidos por uma menina com vestido de comunhão. Sempre com o vagar de quem não receia que o tempo se extinga.
Um cisne destoava. Era o cisne negro. Andava sozinho e só vinha a terra comer os restos dos restos do pão dado aos outros, depois dos outros. O velho julgou-se um pouco como o cisne negro.

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